Baldios, o PRR e a PAC: “Esperamos que não se repita a marginalização dos anteriores quadros comunitários”;

Armando Carvalho, Presidente da Direção da BALADI, lança o repto
Baldios, o PRR e a PAC: “Esperamos que não se repita a marginalização dos anteriores quadros comunitários”
 Armando Carvalho, presidente da Direção da BALADI.
“Os baldios não podem ser vistos apenas na sua vertente de produção de bens e serviços para o mercado. Têm de se considerar as externalidades que geram, nomeadamente em relação ao sequestro de carbono, biodiversidade, proteção de solos, normalização dos regimes hídricos e defesa da paisagem”.
A afirmação é do presidente da BALADI - Federação Nacional dos Baldios, que realizou em Vila Real, a 23 de julho, a sua VII Conferência Nacional, com a presença de centenas de compartes e órgãos gestores de baldios e onde o Governo não se fez representar.
Em entrevista à “Vida Económica”, Armando Carvalho exige que, no PRR – Plano de Recuperação e Resiliência e no futuro Plano Estratégico da Política Agrícola Comum (PEPAC 2023/2027), “não se repita a marginalização dos baldios dos anteriores quadros comunitários”.



Vida Económica – A vossa VII Conferência Nacional realizou-se no contexto do compromisso europeu para a descarbonização até 2050. Em que medida os baldios podem dar um contributo para esse desígnio?
Armando Carvalho -
No programa, para além de outras importantes matérias a ser abordadas pelos especialistas convidados, a matéria da descarbonização está devidamente equacionada, em duas das três mesas que tiveram lugar. Apresentámos resultados do projeto piloto dos 10 agrupamentos dos baldios com uma área florestal de cerca de 70 mil hectares, distribuídos em vários distritos do país. Tivemos uma mesa específica para tratar da fixação de carbono e da vertente das novas energias que estão a emergir nos territórios comunitários, com particular ênfase para as energias eólica e fotovoltaica.  Os territórios comunitários representam ainda hoje 14% da área florestal do país e têm uma comparticipação importante no valor multifuncional da floresta portuguesa. Gostaria ainda de sublinhar que os baldios não podem ser vistos apenas na sua vertente de produção de bens e serviços para o mercado. Têm também de se considerar as externalidades que geram, nomeadamente em relação ao sequestro de carbono, biodiversidade, proteção de solos, normalização dos regimes hídricos e defesa da paisagem. A VII Conferência não deixou de se debruçar sobre esta importante temática. Por último, tenho ainda de destacar a relevância dos baldios, desde que foram devolvidos aos povos, na revitalização social e económica de muitos lugares e aldeias, cujos moradores são compartes.  

VE - O setor florestal e a agricultura têm alocados importantes meios financeiros no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e no Plano Estratégico da PAC (PEPAC 2023/2027). Os baldios vão ser contemplados?
AC -
Esperamos que sim, que os baldios tenham acesso a recursos que lhes permitam gerir as terras comunitárias adequadamente e com uma perspetiva de futuro. Esperamos que não se repita a marginalização dos baldios nos anteriores quadros comunitários. Até ao momento, os agrupamentos dos baldios afetos à BALADI já elaboraram e entregaram candidaturas até ao montante de cinco milhões de euros e têm capacidade e vontade de afetar mais recursos financeiros para a dinamização da sua economia local. Esperamos também que estas candidaturas sejam aprovadas e que não venham a existir entraves que dificultem, ou mesmo impossibilitem, a concretização dos projetos a que se destinam estas candidaturas.

VE – Está em implementação um modelo de gestão agrupada para áreas baldias, através de um projeto-piloto entre a BALADI, o ICNF e o Ministério do Ambiente e da Ação Climática. Em que consiste?
AC -
No ato da assinatura do contrato-programa que deu origem à constituição e dinamização dos agrupamentos dos baldios distribuídos pelos distritos de Vila Real, Porto, Braga, Coimbra, Castelo Branco e Guarda, a BALADI afirmou que este figurino técnico e associativo, já previsto na lei e agora assumido pelo protocolo tripartido entre a BALADI, ICNF e Ministério da Agricultura, corresponde às expectativas das comunidades locais para a gestão dos baldios.

VE – E que área de baldios envolve esta gestão agrupada?
AC -
Com este projeto-piloto, constituímos formalmente oito agrupamentos de baldios, que reúnem 55 unidades, baldios com uma área florestal total de 97 mil hectares e que são geridos por conselhos diretivos e juntas de freguesia. Para apoio técnico e para a gestão foram contratados 18 técnicos pelos agrupamentos.

VE – E o que é que se pretende, afinal?
AC -
Ao fim de apenas três anos de trabalho estão criadas as condições técnicas e administrativas para que estes baldios possam assumir em toda a sua plenitude a gestão dos seus territórios baldios. Com este projeto criou-se uma nova dinâmica comunitária. E os gestores dos baldios passaram a dispor de informação sobre os limites devidamente cartografados dos seus baldios e as potencialidades da ocupação do solo e dos demais recursos endógenos, através da elaboração e aprovação do Plano de Gestão Florestal. Estão, assim, capacitados para atrair investimentos ao abrigo das medidas da União Europeia e nacionais.

VE - A BALADI tem apelado ao cumprimento da Lei dos Baldios por parte do Estado. O que falta cumprir/executar?
AC -
Depois de quatro leis de Baldios e de 46 anos de gestão partilhada de baldios com o ICNF, 26 projetos-lei apresentados na Assembleia da República, muitos dos quais visavam fragilizar a propriedade comunitária, o atual quadro legal permite que as comunidades locais façam da gestão dos seus baldios um instrumento importante para a dinamização social e económica de aldeias e lugares e para uma adequada utilização do território. Mas, para que estes objetivos possam ser plenamente alcançados é necessário que o Estado cumpra, de boa fé, com as suas obrigações para com os povos dos baldios, previstas na lei.
Sucede, no entanto, que o ICNF, ou seja, o órgão estatal que mais de perto se relaciona com os baldios, nem sempre tem a atitude e o comportamento que o cumprimento da lei lhe deveria impor.  A atual Direção do ICNF não é, de resto, a única que insiste no incumprimento da Lei dos Baldios. Desde 1976, muitos foram os incumprimentos e as violações da lei dos baldios, por parte de todas as Direções do ICNF. Eu diria mesmo que esta instituição continua com um vezo antigo, como se os baldios não fossem legal e constitucionalmente uma propriedade das comunidades locais. Há ainda quem, dentro dos serviços florestais, não tenha interiorizado a tipologia deste tipo de propriedade, quem a confunda com a propriedade pública e tenha uma visão um pouco feudal dos baldios.

VE - O que está a ser violado e precisa de ser travado?
AC -
São vários os preceitos legais que, passados cinco anos após a promulgação da Lei, estão a ser desrespeitados, como: o cumprimento integral da figura da cogestão; a não elaboração dos planos de gestão florestal (PGF) atempadamente; a elaboração da plataforma eletrónica, etc.

É “incompreensível” que não haja cadastro dos baldios

Os 10 agrupamentos de baldios da BALADI incluem 56 242 hectares (11% da área de baldios), sendo que 39 mil hectares possuem Plano de Gestão Florestal submetido, 52 mil hectares possuem inventário florestal e 22 400 hectares têm certificação florestal.
E qual é a área total de baldios em Portugal?, perguntámos a Armando Carvalho.
O presidente da BALADI tem dificuldade em responder “com rigor”.  “O número meramente estatístico, mas não suportado em termos de cadastro, é de cerca de 500 mil hectares”, avança, ainda assim.
Todas as tentativas que se fizeram até ao ano de 1938 — ano em que os baldios foram submetidos ao regime florestal — para fazer esse apuramento cadastral “foram goradas”. Nessa altura, diz Armando Carvalho, “eram compreensíveis os receios por parte das autarquias em responder a inquéritos levados a cabo por organismos oficiais, com medo que estes tomassem conta dos seus baldios”.
Não haver esse cadastro depois dessa data é que “é menos compreensível”, uma vez que que o Estado implementou o Plano Nacional de Florestação e tomou administrativamente conta dos baldios, embora “nunca tenha elaborado o seu cadastro”, aponta o presidente da BALADI.
Em 2006, prossegue Armando Carvalho, “a Direção-Geral das Florestas (DGF) celebrou um protocolo com a BALADI e outras entidades para a elaboração dos Planos de Utilização dos Baldios. Pena foi que não se tenha finalizado o trabalho de inventariação dos baldios no plano nacional”.
Para este responsável só há um caminho para o futuro dos baldios: “Estes só serão defendidos e preservados se os representantes das comunidades locais aproveitarem as virtualidades da atual Lei dos Baldios (Lei n.º 75/2017) e tomarem nas suas mãos a gestão plena do seu património”.


Baldios com gestão agrupada “ainda não tiveram incêndios”


A BALADI tem vindo a “apostar junto dos órgãos gestores de baldios” no “desenvolvimento da componente da formação e capacitação das comunidades locais” sobre os principais aspetos legais e financeiros que devem presidir à gestão destas áreas florestais, também para prevenir a ocorrência de fogos. Armando Carvalho, presidente da BALADI, apresenta resultados: “Embora as estimativas nesta altura do ano sejam difíceis, os baldios que estão integrados nos 10 agrupamentos ainda não tiveram incêndios”.

TERESA SILVEIRA
teresasilveira@vidaeconomica.pt


VE - Portugal viveu em julho uma onda de calor e de incêndios por todo o país. As áreas baldias estão a ser atingidas pelos fogos? Que percentagem de baldios é atingida, em média, anualmente, pelos incêndios?
AC -
A BALADI tomou posição, na semana da nossa conferência nacional. Entendemos que, não obstante os incêndios serem algo complexo, são desaconselháveis generalizações inusitadas. Somos de opinião que o Governo não retirou todas as ilações das consequências dos trágicos acontecimentos dos grandes incêndios de 2017 e não implementou as medidas que a Comissão Técnica Independente sugeriu. Em suma, não quis ver o argueiro no seu próprio olho.

VE – O que é que falta fazer na floresta para que não haja incêndios?
AC -
Embora os incêndios façam parte da nossa história agro-florestal rural, sabe-se que, na sua origem, radicam vários fatores de natureza diversa, tais como a seca, as alterações climáticas, a negligência humana e outros motivos mais complexos e estruturais. É conhecido que a floresta padece de uma organização estrutural e os poderes públicos teimam em não enfrentar os grandes interesses económicos e ignoram as causas que nos levaram a esta situação. No entendimento da BALADI, algumas das causas radicam nas profundas alterações socioeconómicas introduzidas nos finais do século passado, que levaram à ruína, à liquidação dos vários sistemas dos modelos agro-florestais de pendor familiar e à erosão de muitas aldeias do Norte e Centro do país. Embora as estimativas nesta altura do ano sejam difíceis, o que podemos avançar é que os baldios que estão integrados nos 10 agrupamentos ainda não tiveram incêndios.

VE - A gestão florestal realizada pelas associações de compartes/conselhos diretivos dos baldios tem-se revelado eficaz na vigilância dos espaços florestais contra os incêndios?
AC -
Uma das componentes em que a BALADI tem vindo a apostar junto dos órgãos gestores de baldios é, sem dúvida, o desenvolvimento da componente da formação e capacitação das comunidades locais sobre os principais aspetos legais e financeiros que devem presidir à gestão dos baldios, tendo em conta as suas fragilidades. Através do contacto direto com os compartes e suas assembleias, incentivamos o intercâmbio para um maior conhecimento do que se passa nas outras regiões, colhemos novas e inovadoras experiências de boa gestão, de forma a valorizar o desenvolvimento e a extensão florestal.  
De referir ainda que os baldios que se encontram a gerir autonomamente os seus territórios comunitários, sem a participação do ICNF, têm sido mais sensíveis ao investimento na área da prevenção, pois percebem mais facilmente a sua importância e as suas externalidades positivas a médio e longo prazo.

TERESA SILVEIRA teresasilveira@vidaeconomica.pt, 11/08/2022
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