“Há muitas fronteiras a mudar no setor automóvel”;

Eric Feunteun, diretor do programa de veículos elétricos e novos negócios do grupo Renault
“Há muitas fronteiras a mudar no setor automóvel”
Eric Feunteun é o diretor  do programa de veículos elétricos e novos negócios do grupo Renault.
O setor automóvel está a mudar como nunca e isso é um desafio para o setor automóvel, de acordo com Eric Feunteun, diretor do programa de veículos elétricos e novos negócios do grupo Renault. “Há muitas fronteiras a mudar [no setor automóvel]. A fronteira entre passageiros e mercadorias, a fronteira entre transporte público e privado – temos o car-sharing, a Uber Pool e como é que isso compara com o autocarro –, a fronteira entre os setores energético e automóvel”, refere, em entrevista à “Vida Económica”, o especialista, que considera que este cenário “exige capacidade de adaptação”, mas oferece “grandes oportunidades”. A marca está a testar veículos elétricos V2G (sigla em inglês para veículo para a rede) no Porto Santo.
Vida Económica – Este projeto está numa fase intermédia, com a introdução de carga V2G. Mas já consegue fazer um balanço da iniciativa aqui no Porto Santo?
Eric Feunteun – Terminámos a primeira fase. Este projeto arrancou há dois anos. Há um ano estive aqui e entreguei os 20 veículos elétricos. Agora temos um ano de experiência dessas viaturas na ilha. Podemos constatar que está a funcionar e que as pessoas gostam de veículos elétricos e que já não têm receios em relação à sua utilização. Agora é tempo de crescer, porque se queremos impactar na produção e nas energias renováveis, 20 automóveis não são suficientes, precisamos chegar a 100, 200, 500. É neste patamar que estamos. Creio que, em conjunto com os parceiros e com o produto, demonstrámos que pode funcionar e agora estamos num processo de ganho de escala. Essa é a fase que estamos a começar agora.
 
VE – Estão já a replicar este projeto em outras ilhas e ecossistemas de empresas?
EF – Sim, temos muitas solicitações a acredito que, agora, Porto Santo é já famosa em vários locais devido a este projeto. O que estamos a fazer aqui não é apenas um caso isolado. A ideia é fazer “copy-paste” da iniciativa e aumentar a eficiência em outros pontos. Tudo o que aprendemos aqui num ano, na próxima ilha, conseguiremos fazer em três meses.
 
VE – A Renault tem metas ambiciosas em termos de produto e mercado para os veículos elétricos até 2025.
EF – Sim, o nosso objetivo é um mix de 10% até 2022. Este é um mix mundial, mas que será superior na Europa, já que, a par da China, está a liderar em termos de processo de mudança para os veículos elétricos. Para apoiar esta ambição, temos dois focos principais. Um é ter uma gama de produtos bastante, o que já temos, mas continuaremos a melhorar e a alargar a gama, tanto para automóveis maiores como para mais pequenos, e manter a nossa estratégia em termos de veículos comerciais ligeiros. Outro foco principal que temos é continuar a baixar os custos, porque sabemos que o primeiro fator inibidor da escolha de um veículo elétrico é o custo. Faremos isso de forma bastante ativa, para incrementar os volumes.
 
VE – Quando poderão os modelos elétricos bidirecionais chegar à gama Renault?
EF – Diria que em 2022.
 
VE – O papel das autoridades públicas também é importante, tanto na infraestruturação ou nos condomínios, entre outros aspetos. O poder político, tanto em Portugal como na Europa, cumpre esse papel?
EF – Creio que sim. A mudança nunca é ao ritmo que desejaríamos, porque precisamos que o ecossistema suporte o crescimento do mercado. Posso dar o exemplo da Itália e da Noruega. A quota de mercado de veículos elétricos ronda 0,3% e na Noruega a quota é superior a 30%. É 100 vezes superior, sendo que ambos os mercados são semelhantes em termos de mercado automóvel (vendas e consumidores). Isso realça a importância do ecossistema. Creio que os governos estão a tomar medidas e há muitas boas notícias a caminho. Estamos a falar em termos de incentivos, que muitos países e regiões estão a criar – e a Madeira está a preparar um pacote ambicioso nessa medida. Estamos a falar também nos carregadores públicos, em que há evolução e já há mais de 100 mil unidades disponíveis, a caminho das 200 mil.
Tenho três preocupações principais a transmitir às autoridades dos vários países. Uma, é que podem fazer mais nos benefícios não financeiros. Exemplo disso são melhorias que discriminam positivamente os condutores de veículos elétricos, mas sem implicar dinheiro, como sejam faixas dedicadas ou estacionamento dedicado. São medidas sem impacto orçamental e que podem ser uma grande ajuda. Outra preocupação a transmitir é, em relação aos carregadores públicos, a necessidade de um esforço adicional na disponibilidade desses mesmos carregadores, não tanto em termos de quantidade, mas de qualidade. Ou seja, muitas vezes os carregadores existem, mas não estão a funcionar ou não foram alvo de manutenção, etc. O último ponto referido por si são os condomínios. Este aspeto pode variar de um país para outro, mas resulta de dois problemas principais, um é a lentidão do processo administrativo – pode demorar vários meses ou anos entre a decisão de aquisição de um veículo elétrico a aprovação para instalação de um carregador – e outra é a questão técnica da pré-instalação de cablagens para levar a eletricidade para a zona de estacionamento do edifício. Em alguns países foi feita com sucesso a definição de um prazo para todos os condomínios fazerem essa pré-instalação de cablagem e, depois, o processo fica muito mais simples. Se não fizermos isso, o processo para o cliente é bastante mais difícil. Essas são as três prioridades que daria a este trabalho conjunto com as autoridades no ecossistema dos veículos elétricos. 
 
VE – A logística de última milha tem grandes desafios pela frente. Crê que o esbater da fronteira entre veículos de passageiros, comerciais ligeiros e outros dispositivos de mobilidade na logística urbana é um desafio também para os construtores de automóveis?
EF – Há muitas fronteiras a mudar [no setor automóvel]. A fronteira entre passageiros e mercadorias, a fronteira entre transporte público e privado – temos o car-sharing, a Uber Pool e como é que isso compara com o autocarro –, a fronteira entre os setores energético e automóvel… Portanto, estamos num ambiente excelente em que tudo está a mudar muito rapidamente, o que exige capacidade de adaptação, mas que oferece grandes oportunidades também para oferecer uma boa experiência ao condutor (que é, no fim de contas, o mais importante), um bom contributo para o problema ambiental do planeta e que as empresas sejam rentáveis, para que possam continuar no mercado.
 
VE – Os clientes profissionais das PME, que não apenas os das grandes empresas, também estão a interiorizar esta mudança?
EF – Sim. Muitas vezes há pressão das empresas clientes e dos seus motoristas. Mas há recetividade. As organizações de correios são, por norma, bastantes conservadoras e muitas estão, em todo o mundo, a transitar de furgões com motor a combustão interna para o Renault Kangoo ZE. Se perguntar ao carteiro que lhe entrega o seu correio se quer voltar aos anteriores veículos convencionais, ele vai, com grande dose de probabilidade, responder-lhe que não. E não é pelas questões ambientais, mas porque o seu trabalho é agora mais fácil, sem ruído, sem vibrações, com caixa automática [de funcionamento igual], pelo que prefere o veículo elétrico. Portanto, a boa notícia aqui é que a tecnologia é importante para o planeta, mas essa evolução é coerente com o conforto e o prazer de condução das pessoas. Não é o caso de estarmos a incentivar a pessoas a mudarem para algo de que não irão gostar, pelo contrário. 

Marca testa elétricos V2G no Porto Santo
 
A Renault começou com testes, em condições reais, em veículos elétricos V2G (sigla em inglês para veículo para a rede) no Porto Santo. A pequena ilha atlântica torna-se, desse modo, num dos primeiros pontos mundiais (também estão unidades na Holanda) a usar automóveis elétricos, que permitem, além de receber energia, colocar energia na rede pública ou em outro veículo em corrente alternada (AC). Com efeito, já há casos de carregamento V2G em corrente contínua (DC), mas o AC tem custos de carregadores mais baixos e apresenta maior compatibilidade técnica com os fornecedores de energia.
Foi no ano passado que o projeto Porto Santo Smart Fossil Free Island arrancou, por intermédio da Renault, da tecnológica The Mobility House e da Empresa de Eletricidade da Madeira (EEM), com o apoio do Governo Regional do arquipélago. 
O projeto arrancou com 20 veículos elétricos da marca (14 ZOE e de seis Kangoo), que representam 2% do parque circulante na ilha. O objetivo até ao fim de 2020 é atingir 120 veículos elétricos (12% do parque) e chegar, depois dessa data, às 500 unidades de veículos elétricos em Porto Santo, cerca de 50% do parque circulante médio.
Porto Santo tem, no presente, 16% da energia produzida a partir das renováveis e pretende atingir 25% já em 2020. A meta até 2025 é de 60%. 

 


Aquiles Pinto aquilespinto@vidaeconomica.pt, 21/06/2019
Partilhar
Comentários 0