Processos instaurados no TAD aumentam devido a “enorme litigiosidade” no futebol
Recém-eleita vice- -presidente do Conselho de Arbitragem Desportiva, a juíza desembargadora do Tribunal Central Administrativo Sul Ana Celeste Carvalho conta nesta entrevista como foi convidada a integrar este órgão e que o tipo de litígios mais frequentes dirimidos pelo Tribunal Arbitral do Desporto, em função do número de processos entrados, são aqueles abrangidos no âmbito da arbitragem necessária e que representam mais de 90%
Tendo iniciado a atividade a 1 de outubro de 2015 como entidade jurisdicional independente, com competência específica para administrar a justiça relativamente a litígios que relevam do ordenamento jurídico desportivo ou relacionados com a prática do desporto, qual o balanço que faz do funcionamento do Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), mesmo que apenas tenha tomado posse em abril deste ano?
Fui convidada em 2015 para integrar o Conselho de Arbitragem Desportiva (CAD), órgão com funções de acompanhamento da atividade e do funcionamento do TAD, em ordem à preservação da sua independência e garantia de eficiência, podendo formular sugestões de alteração legislativa ou regulamentar que entenda convenientes, além de estabelecer a lista de árbitros do TAD e designar os árbitros que a integram, entre outras competências, mas, por dificuldades atinentes à obtenção da autorização do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, não tomei posse. Entretanto, mudou a legislatura, assim como o Governo, e no início de 2017 voltei a ser convidada pelo Conselho Nacional do Desporto, presidido pelo membro do Governo com a pasta do desporto. Tendo também ocorrido a alteração de composição do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, foi possível obter a autorização deste órgão de gestão dos Juízes, tendo acabado por tomar posse em 5 de abril deste ano.
Recebeu então dois convites para integrar o CAD.
Tenho a particularidade de ter recebido dois convites, em duas legislaturas e com membros do Governos diferentes. A minha ida para o TAD não deixa de ter algumas semelhanças com o próprio processo de criação do TAD, que não foi simples, nem linear. Iniciado o processo legislativo em maio de 2012, apenas teve o seu termo em junho de 2014, com a publicação da Lei n.º 33/2014, de 16 de junho, a qual constitui a primeira alteração à Lei do TAD, aprovada pela Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, viabilizando a instalação do TAD e a entrada em vigor da Lei do TAD. A delonga do processo legislativo da Lei que cria o TAD e aprova a respetiva Lei deveu-se ao veto presidencial, nos termos do n.º 1 do artigo 279.º da Constituição, após o Acórdão n.º 230/2013 do Tribunal Constitucional, que declarou a inconstitucionalidade de normas contidas no Decreto da Assembleia n.º 128/XII, na medida em que delas resulte a irrecorribilidade para os tribunais do Estado das decisões do TAD proferidas no âmbito da sua jurisdição arbitral necessária. Devolvido esse Decreto à Assembleia da República, foram apresentadas propostas de alteração, de que veio a resultar a aprovação da Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, que cria o TAD e a aprova a sua lei. Porém, veio a recair sobre esta lei nova pronúncia de inconstitucionalidade, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 781/2013, que declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 8.º da Lei do TAD, conjugadas com as normas dos artigos 4.º e 5. Assim, o TAD tem a sua génese marcada pela inconstitucionalidade de alguns dos preceitos da sua lei, não tendo sido possível seguir, em toda a linha, a orientação que presidia à sua criação em face da opção de política legislativa de criação de um regime de arbitragem necessária, a par do regime da arbitragem voluntária. Não obstante, foi erigido um regime legal que, embora não sendo isento de muitas críticas, dá resposta às questões que haviam suscitadas pelo Tribunal Constitucional, todas elas associadas às condições de acesso ao Direito e à justiça, enquanto direito fundamental previsto no artigo 20.º da Constituição e que assume várias vestes e concretizações.
Mas que balanço se pode fazer?
O TAD conta agora com dois anos de funcionamento e se este período é ainda curto para projetar todo o seu futuro, não sendo possível, com segurança, prever a sua evolução, é possível fazer um balanço deste período de funcionamento e apontar os seus traços essenciais. O TAD possui um campo alargado de competências no âmbito dos litígios relacionados com o desporto, tendo competências jurisdicionais, de resto, a sua principal competência, mas, simultaneamente, competências em matéria dos serviços de consulta e de mediação. Por isso, enquanto entidade jurisdicional independente, o TAD tem competência específica para administrar a justiça relativamente a litígios que relevam do ordenamento jurídico desportivo ou relacionados com a prática do desporto, com especial relevo nestes dois últimos anos para a arbitragem necessária, que representa mais de 90% da atividade do tribunal. Como era expectável, pela novidade e necessidade de adaptação ao novo quadro legal, o primeiro ano de funcionamento do TAD foi marcado por um reduzido movimento processual. Associam-se diversas dificuldades, como a necessidade de compreensão do regime e a inexistência de um regime legal de apoio judiciário, agora recentíssimo, aprovado pela Portaria n.º 314/20017, de 24 de outubro, que altera a Portaria n.º 301/2015, de 22 de setembro, clarificando alguns aspetos práticos relativos ao pagamento das taxas de arbitragem, atos avulsos e despesas nos casos em que a responsabilidade é do interessado que beneficia de apoio judiciário, e no que diz respeito ao pagamento de taxa de arbitragem e encargos com o processo no âmbito das providências cautelares. À semelhança de qualquer tribunal estadual, também no TAD as partes poderão ter necessidade de recorrer ao apoio judiciário, questão que a partir de agora fica resolvida. Nestes dois anos de funcionamento tem-se assistido a um aumento progressivo do volume processual, medido pelo número de processos entrados, devendo alcançar-se até ao final deste ano, mais do dobro do número de processos instaurados em 2016, fruto em grande parte da enorme litigiosidade a que temos assistido no âmbito de certa modalidade desportiva.
Refere-se ao futebol?
Sim.
E em relação à arbitragem voluntária?
É muito significativa a diferença do número de processos instaurados no âmbito da arbitragem necessária, em comparação com a arbitragem voluntária, pois esta é praticamente inexpressiva. No que concerne aos serviços de consulta e de mediação, também não é significativo o número de pareceres emitidos no âmbito da consulta e não foi estreado o serviço de mediação, por até ao momento ninguém a ele ter recorrido. O volume processual do TAD aponta, pois, inequivocamente para a importância da arbitragem necessária, que é aquela cujos litígios emergem dos atos e omissões das federações desportivas, ligas profissionais e outras entidades desportivas, no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direção e disciplina. Numa altura em que se ouve tanto falar nos processos disciplinares desportivos, o TAD acaba por assumir um papel importante na resolução desses litígios, submetidos a normas e princípios jurídicos de direito administrativo. Por outro lado, há a assinalar a circunstância de, até ao momento, não ter sido interposto qualquer recurso do acórdão arbitral para a Câmara de Recurso do TAD, por as partes optarem por recorrer para o tribunal estadual competente, o Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS). Excluindo os recursos que, sob certas condições, podem ser interpostos para o Supremo Tribunal Administrativo e para o Tribunal Constitucional, o TCAS é o órgão jurisdicional estadual com competência exclusiva para apreciar em recurso os acórdãos proferidos pelo TAD. Tendo em conta que decorreram apenas dois anos de funcionamento, altura em que todas as partes envolvidas tiveram de passar por uma fase de adaptação, considero que o balanço é positivo.
Quais os tipos de litígios que mais são dirimidos e quais os tipos de litígios mais complexos?
Tal como referi, o tipo de litígios mais frequentes, em função do número de processos entrados, é indiscutivelmente, e sem margem para quaisquer dúvidas, os abrangidos no âmbito da arbitragem necessária, relativos dos atos e omissões das federações desportivas, ligas profissionais e outras entidades desportivas, no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direção e disciplina.
Para que se possa perceber melhor, trata-se de litígios emergentes de relações jurídicas pautadas por normas de autoridade e de poderes públicos, decorrentes de atos ou de omissões dos órgãos das entidades desportivas, mas com grande destaque, praticados pelas federações desportivas e pelas ligas profissionais, em domínios como a organização de provas ou de campeonatos, a regulamentação, estando em causa a aprovação de regulamentos administrativos, como os regulamentos da prova e os regulamentos disciplinares, a prática dos mais variados atos ou omissões decorrentes do exercício do poder de direção das entidades desportivas e, com grande destaque, na atualidade, os atos de aplicação de sanções disciplinares, da mais variada ordem, sendo muitas e diferenciadas as sanções disciplinares aplicadas, pela prática das igualmente diversificadas infrações disciplinares. Basta pensar que cada federação desportiva dispõe de um regulamento disciplinar e de um conjunto de infrações disciplinares previstas, que podem ser muito diferentes de modalidade para modalidade desportiva, sendo múltiplos os litígios emergentes. A complexidade dos litígios é muito variada e é em grande parte explicada pelo quadro normativo aplicável que é também ele muito complexo, quer submetido a normas de direito público, quer a normas de direito privado, numa teia normativa nem sempre de fácil concatenação. Tendem também a alcançar maior relevo o número de providências cautelares requeridas, as quais exigem uma resposta muito célere por parte do TAD, mas cujo regime jurídico não é inteiramente coerente.
Na sua opinião, os mecanismos jurídicos existentes são suficientes para trazer alguma estabilidade ao associativismo desportivo?
Agora, como nunca, no passado, foi criado um regime normativo que centraliza no TAD a competência jurisdicional para a resolução da globalidade dos litígios desportivos. Embora se mantenha a arbitragem voluntária, detendo os interessados a possibilidade de continuar a recorrer aos tribunais estaduais, neste caso, os tribunais judiciais, a grande novidade decorrente da criação do TAD traduz-se na retirada da competência jurisdicional aos tribunais administrativos em primeira instância, para centralizar a resolução dos litígios submetidos a normas de direito administrativo ao TAD, com a manutenção da competência jurisdicional dos tribunais administrativos limitada à fase de recurso jurisdicional.
O TAD já se debruçou sobre pelo menos um “caso” sem qualquer ligação com o ordenamento jurídico português. Desta forma, e em abstrato, duas partes com um litígio idêntico e sem qualquer elemento de transnacionalidade e de conexão podem submeter um litígio ao TAD em sede de arbitragem voluntária?
De todos os processos instaurados no TAD é verdade que há um que respeita a arbitragem internacional, submetido ao regime da arbitragem voluntária, onde predomina a vontade das partes. Podem ser submetidos à arbitragem voluntária do TAD todos os litígios não abrangidos pela arbitragem necessária, relacionados direta ou indiretamente com a prática do desporto, que segundo a lei da arbitragem voluntária sejam suscetíveis de decisão arbitral. Isso confere grande abrangência à arbitragem voluntária desportiva, sabendo-se a multiplicidade de provas desportivas e de campeonatos internacionais que existem, com a presença de atletas e praticantes desportivos nacionais e com a representatividade de clubes nacionais. Por isso, a própria criação do TAD viabiliza e concretiza o acesso à justiça e ao Direito em domínios onde dificilmente as partes recorreriam aos tribunais estaduais para a resolução do litígio.
Numa conferência no ano passado, e em análise ao TAD, referiu-se, segundo algumas notícias, a “desarticulação e lapsos do legislador” em algumas matérias. A que se referia?
É pública a minha posição sobre a Lei do TAD, quer no respeitante a algumas das soluções encontradas, quer no respeitante à sua técnica legislativa. Por diversas vezes e em diferentes fóruns de debate, incluindo no decurso do processo legislativo, tive a oportunidade de me pronunciar, criticando algumas das soluções e apontando soluções diferentes em relação a aspetos concretos da lei. Terei sido eu uma das primeiras a criticar a lei e a apontar soluções, pois, considerando a submissão da arbitragem necessária ao direito público e, muito em particular, ao direito administrativo, aliada à minha formação e experiência profissionais como Juíza Administrativa, permitiu-me desde cedo compreender e identificar algumas entropias do regime de acesso à justiça que então se estavam a criar. Porém, desde 2014 outros se têm seguido, não sendo hoje a única a criticar certas soluções. Existe mesmo unanimidade e consenso quanto à necessidade de alteração legislativa quanto a certas matérias. Por isso, há muito que estão diagnosticadas as questões a merecer reapreciação do legislador. A própria Comissão de Arbitragem Desportiva do TAD, que tenho a honra de integrar, considerando as suas legais competências, podendo apresentar sugestões de alteração legislativa que entenda convenientes, está atenta a esta situação. Sem pretender ser exaustiva e não sendo este o momento para a completa explanação ou razão de ser da crítica dirigida, há um conjunto de questões que, sem pôr em causa o normal e regular funcionamento do TAD, devem ser corrigidas.
Quais em concreto?
Uma das questões mais sensíveis prende-se com a interpretação a expender em relação ao disposto no artigo 3.º da Lei do TAD, segundo o qual, no julgamento dos recursos e impugnações, o TAD goza de jurisdição plena, em matéria de facto e de Direito, procedendo a um verdadeiro reexame do mérito da decisão administrativa impugnada ou da atuação do órgão desportivo sob censura, isto é, sobre os termos e o conteúdo ou sentido da atuação desportiva. O âmbito do controlo jurisdicional do TAD deve fazer-se nos mesmos termos em que o fazem os tribunais administrativos, isto é, com a limitação também a estes imposta, prevista no n.º 1 do artigo 3.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, de não se poderem substituir à Administração no domínio de valorações respeitantes ao mérito, nos litígios submetidos à arbitragem necessária. Assim, aplicam-se ao TAD as mesmas limitações que se impõem aos tribunais estaduais, decorrentes da natureza da matéria sob escrutínio, designadamente, quanto à possibilidade de proferir pronúncias judiciais substitutivas da decisão administrativa praticada ou omitida. Acredito, porém, que esta é uma questão cuja melhor interpretação será dada pela jurisprudência que será proferida pelos tribunais administrativos, em recurso das decisões arbitrais do TAD, pelo que o tempo encarregar-se-á de a resolver. Outra questão a carecer de aperfeiçoamento legislativo e que já mereceu atenção pelo TAD, respeita à publicidade da decisão arbitral e à transparência da justiça arbitral, constituindo uma verdadeira imposição de interesse público que os acórdãos arbitrais, em especial, no âmbito da arbitragem necessária, sejam publicitados em bases de dados de jurisprudência do TAD sem que se possa atribuir às partes o direito potestativo de se opor à publicidade da decisão arbitral. O conhecimento da justiça que se faz no TAD não deve poder ser condicionado pelo interesse particular das partes, visto se aplicarem à justiça arbitral as normas constitucionais e legais que regulam o acesso à justiça e ao direito, enquanto direito fundamental previsto no artigo 20.º da Constituição, podendo extrair-se do artigo 206.º da lei fundamental, o princípio geral da «audiência dos tribunais». A garantia da publicidade é transversal a toda a justiça e a todos os tribunais, incluindo os arbitrais e, por maioria de razão, no âmbito da arbitragem necessária, que funciona como a primeira e necessariamente única via de acesso à justiça. Sem que revista a importância das questões anteriores, mas com enorme relevância prática, identifica-se ainda a desarmonia do regime cautelar previsto na Lei do TAD. Embora se preceitue a competência exclusiva do TAD no âmbito da arbitragem necessária, admite-se a competência concorrente entre tribunais estaduais e o TAD, nos casos de o processo arbitral não tiver ainda sido distribuído ou o colégio arbitral não estiver constituído. Assim, prevê-se um regime de competência exclusiva do TAD no âmbito das providências cautelares, mitigado à verificação de uma das duas situações legalmente previstas, em obediência à eficácia e utilidade da própria tutela cautelar, em razão da delonga que poderia advir do próprio processo cautelar arbitral. Por outro lado, também em matéria de providências cautelares parece-me muito pouco curial que o Presidente do Tribunal Central Administrativo Sul disponha de competência jurisdicional para julgar as providências cautelares que sejam instauradas no TAD. Acresce a questão essencial em torno da amplitude dos recursos jurisdicionais para a jurisdição administrativa, também no âmbito da arbitragem necessária, designadamente, quanto a saber se da decisão proferida em recurso pelo Tribunal Central Administrativo Sul cabe segundo grau de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, sob o regime do recurso excecional de revista. Neste caso, também aqui me parece que a jurisprudência fará o seu caminho, esclarecendo a questão, sem prejuízo de considerarmos que o legislador não está dispensado de regular a matéria em termos claros e inequívocos. Assim, sem esgotar a enunciação das questões pertinentes sobre a Lei do TAD, tanto mais que outras existem, deixamos aqui algumas das mais relevantes.