“A audição das crianças, embora constitua imperativo legal, não tem estado no centro das prioridades de muitos magistrados”
Magistrada no Ministério Público (MP) desde 1987, tendo em 2016 iniciado a atividade de docência,em exclusivo, na jurisdição da Família e das Crianças no Centro de Estudos Judiciários (CEJ), Ana Teresa Leal é coautora do livro “Poder Paternal e Responsabilidades Parentais” e tem publicado um artigo sobre o crime de subtração de menor. Nos últimos anos tem colaborado com a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, União de Mulheres Alternativa e Resposta, Comissão de Proteção de Crianças e Jovens da Amadora e Associação de Intervenção Comunitária, Desenvolvimento Social e de Saúde em ações de formação tendentes ao combate e erradicação em Portugal da Mutilação Genital Feminina
Qual a avaliação que faz da implementação do novo Regime Geral do Processo Tutelar Civil (RGPTC)?
A avaliação é muito positiva. Em vigor desde setembro de 2015, o RGPTC veio substituir a Organização Tutelar de Menores, que se encontrava em vigor desde 1978. Trata-se de uma lei inovadora em muitos dos seus aspetos e que veio dar resposta a inúmeras necessidades que se faziam sentir. Certo é que muito caminho há ainda a percorrer para que se possa retirar de tal regime jurídico o máximo das suas potencialidades, mas só o tempo e a adaptação progressiva das estruturas, que paulatinamente tem vindo a ser feita, o permitirá. A título de exemplo, na área da assessoria técnica ao tribunal, há ainda um longo percurso a fazer até atingirmos aquilo que é o desejável, e que encontra previsão no RGPTC, traduzindo-se na existência de equipas técnicas multidisciplinares de apoio aos tribunais, junto de cada um dos juízos de família e menores.
Estão os Tribunais e respetivos Juízes/as preparados para julgar bem as matérias relacionadas com Família, Crianças e Jovens?
A resposta à questão colocada só pode ser afirmativa. Em Portugal existe um sistema de recrutamento e formação dos magistrados, sejam juízes ou magistrados do MP, muito rigoroso e exigente. Após concurso e seleção dos candidatos, inicia-se a formação inicial no CEJ, com duração de um ano, a que se segue a fase teórico-prática e posterior colocação em regime de estágio, etapas com uma duração que é, normalmente, de dois anos. As matérias relacionadas com o direito da família e das crianças são, a par de outras, lecionadas no primeiro ano e, já nos tribunais, os futuros magistrados fazem também a sua formação junto dos juízos de família e menores. Por outro lado, o CEJ, em articulação com os Conselhos Superiores da Magistratura Judicial e do MP, já organizou cursos de especialização para juízes e procuradores da República que passam a exercer funções nesta área, e concebe, anualmente, várias ações de formação contínua, abertas a todos os magistrados em exercício de funções. Na jurisdição da família e crianças, só para o ano 2017/2018 foram programadas sete ações de formação contínua, que se estendem por 11 dias. A tudo isto se junta a autoformação de cada um dos magistrados. Acresce que ambas as magistraturas têm um sistema de inspeções que, em última análise, intervirá nas situações de desadequação do magistrado à sua função na área do direito da família e das crianças.
E ao nível do MP, estão os Procuradores bem preparados para este tipo de processos?
A resposta a esta questão está já contida no que afirmei anteriormente, pois a formação de ambas as magistraturas é em tudo idêntica. De salientar ainda que a mais recente proposta de lei relativa ao Estatuto do MP, atualmente em discussão pública, consagra a existência de cursos especializados, a ministrar no CEJ, cuja frequência e aprovação podem constituir fator de preferência na colocação de magistrados em juízos de competência especializada, designadamente nos juízos de família e menores, o que, a ser aprovado, constituirá um fator acrescido de formação.
Considera essencial a constituição de advogado nos processos desta natureza?
A constituição de advogado no âmbito do processo tutelar cível apenas é obrigatória na fase de recurso, o que não impede que a mesma possa ter lugar em qualquer fase do processo, se for essa a vontade das partes. Mas neste segmento há um aspeto que pela sua importância deve ser salientado, traduzindo-se numa novidade da atual lei. Hoje em dia é obrigatória a nomeação de advogado à criança sempre que os seus interesses estejam em conflito com os dos seus pais, representante legal ou com quem tenha a sua guarda de facto. Prevê ainda a lei que tal nomeação tenha lugar sempre que a criança o solicite ao tribunal. Entendo ser este um sistema equilibrado, mas há um aspeto que reputo de importância crucial, a existência de um corpo especializado de advogados nas matérias referentes ao direito da família e das crianças, cuja indicação compete à Ordem dos Advogados, de modo a que os interesses das crianças possam ser devidamente defendidos. É neste sentido que apontam as Diretrizes do Comité de Ministros do Conselho da Europa sobre a justiça adaptada às crianças, onde expressamente se refere que “os advogados que representam crianças devem ter formação e conhecimentos sobre os direitos da criança e matérias conexas, receber formação contínua e aprofundada e serem capazes de comunicar com as crianças de acordo com o seu nível de compreensão.” Este é um assunto de que muito se tem falado mas que atualmente parece encontrar-se num impasse é, porém, urgente que o sistema seja alterado, pois a melhor defesa dos interesses da criança assim o impõe.
O incumprimento das responsabilidades parentais, designadamente de alimentos ou de visitas, tem, na prática, consequências relevantes para os incumpridores? Ou, pelo contrário, assiste-se a um sentimento geral de impunidade qualquer que seja o grau ou intensidade do incumprimento?
Os incumprimentos do regime fixado para o exercício das responsabilidades parentais nos segmentos dos alimentos e visitas constituem uma parcela apreciável do volume processual existente nos juízos de família e menores. Em ambas as situações a lei prevê mecanismos sancionatórios para os inadimplentes e a tutela dos direitos em causa encontra respaldo quer na vertente civil quer na penal. No que respeita ao não pagamento da prestação alimentar, a questão apresenta-se de contornos simples sempre que o devedor aufira vencimento ou qualquer outro rendimento, pois nestas situações a lei consagra um procedimento fácil e célere que consiste em, por ordem do tribunal, se procederem a descontos diretos naqueles rendimentos, ficando deste modo assegurado o pagamento da prestação alimentícia. Tudo se torna, no entanto, mais difícil se ao devedor não forem conhecidos rendimentos que permitam tais descontos, caso em que resta o recurso ao processo executivo, este muito mais demorado e apenas exequível relativamente àqueles que possuam bens conhecidos e suscetíveis de penhora, o que constitui uma ínfima parcela dos progenitores não cumpridores. Quando não se mostram possíveis os descontos diretos, só o recurso ao Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, que substitui o progenitor devedor no pagamento da prestação alimentícia fixada pelo tribunal, reunidas que se mostrem as condições necessárias, permite ultrapassar certas situações mais graves de carência económica do agregado familiar em que se insere a criança. O não pagamento da prestação alimentícia pode ainda fazer incorrer o incumpridor na prática do crime de violação da obrigação de alimento. Trata-se, no entanto, de um crime que depende de queixa e esta não é, por regra, apresentada, seja por desconhecimento, seja por se considerar ter a mesma muito reduzida eficácia naquilo que realmente importa, o pagamento da prestação alimentar. Podemos, assim, afirmar que, em muitas circunstâncias, o incumpridor sai impune quando em causa está o não pagamento da prestação alimentícia.
E quanto ao incumprimento do regime de visitas?
Contornos diversos apresenta o incumprimento do regime de visitas por parte do progenitor a quem a criança se encontra confiada. Neste segmento, o novo RGPTC tem diversas normas que permitem sancionar economicamente o incumpridor, com multa que atualmente pode ir até 2040,00J e com indemnização a favor da criança e/ou do outro progenitor. Em situações mais graves de violação do regime de convívios com o progenitor não residente, pode mesmo ter lugar o seu cumprimento coercivo, com recurso às autoridades policiais, sempre com o acompanhamento e intervenção de um técnico da Segurança Social, que faz parte da equipa multidisciplinar de apoio ao tribunal. Embora considere que o recurso a tal medida deva ser, tanto quanto possível, evitado, por poder constituir uma situação causadora de tensão e até de sofrimento para a criança, certo é que, se for a única forma de conseguir que o progenitor com quem a criança não reside possa com ela manter os contactos e os laços afetivos próprios da filiação, julgo que o tribunal não deve hesitar em o utilizar. Os eventuais aspetos negativos para a vida da criança que esta medida possa causar serão sempre reduzidíssimos, comparados com os danos por ela sofridos com a ausência da sua vida de um dos progenitores que lhe quer bem. Filhos órfãos de pais vivos, como alguém inspirado já lhes chamou, é uma realidade que os tribunais têm obrigação de combater, nem que para tanto seja necessário recorrer a métodos que, embora sendo mais drásticos, encontram apoio na lei. A conduta daquele que, “de modo repetido e injustificado”, não cumprir com o regime de convívios estabelecido na regulação do exercício das responsabilidades parentais pode também integrar a prática do crime de subtração de menor, punido com prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias. Mas também este crime depende de queixa e nem sempre esta é apresentada.
Qual a interpretação que tem vindo a ser dada pelos tribunais?
A interpretação que tem vindo a ser dada pelos nossos tribunais a este normativo penal é, tendencialmente, no sentido de restringir as situações abrangidas por este preceito. Mas outra das novidades do RGPTC é a possibilidade de, mesmo depois de ter sido proferida decisão final, o tribunal poder determinar o acompanhamento da execução do regime fixado quanto aos convívios, por parte dos serviços de assessoria técnica ao tribunal, sempre que considere haver risco de incumprimento do mesmo. O estabelecido na decisão quanto aos convívios com o progenitor não residente é, deste modo, monitorizado e, perante uma violação do decidido, o tribunal, oficiosamente, pode desencadear o respetivo incidente de incumprimento. Diria, assim, que neste segmento o nosso ordenamento jurídico contém instrumentos que permitem dissuadir os incumprimentos, sancionar os prevaricadores e fazer cumprir as suas decisões. A impunidade só acontecerá se os tribunais não se mostrarem firmes na aplicação da lei e dos mecanismos que esta colocou ao seu dispor.
Quais os mecanismos que a Lei apresenta para evitar que um menor seja manipulado por um ou ambos os pais e de que forma são aplicados na prática?
A manipulação da vontade da criança por parte de um dos progenitores, induzindo na mesma sentimentos negativos contra o outro progenitor, de modo a afetar a relação entre ambos, com o objetivo de conseguir o seu afastamento físico e afetivo, é um processo algumas vezes desencadeado em situações de separação conjugal como um meio de atingir, magoar e punir o outro, considerado o responsável pela rutura. Como já tive oportunidade de dizer e escrever anteriormente, “o progenitor que tem consigo a criança na maior parte do tempo tem um meio privilegiado de a moldar à sua vontade e de lhe inculcar sentimentos negativos relativamente ao outro progenitor, processo que se inicia com uma ténue rejeição por parte da criança de estar com ele, e se vai agravando ao longo do tempo. Se não existir uma conduta firme no sentido de pôr cobro a tal atuação, a situação pode culminar no desenvolvimento por parte da criança de sentimentos de aversão e até ódio pelo outro progenitor, que são depois muitos difíceis de reverter.” É a utilização do filho como arma para atingir o outro. Este processo de afastamento é habitualmente designado por “alienação parental”, mas esta designação tem levantado alguma celeuma, dado o facto de se considerar que o termo alienação comporta em si o significado de uma doença mental e, portanto, inadequado para classificar o fenómeno. Chamemos-lhe, pois, manipulação da vontade ou programação da vontade da criança, certo é que se trata de uma realidade que dá azo a um significativo número de processos nos juízos de família e menores e cuja solução se apresenta, muitas vezes, difícil, mas nunca impossível.
Mas qual deve ser a atuação?
Respondendo diretamente à questão colocada, diria que a atuação deve ser precoce, de modo a evitar que qualquer tentativa de manipular a vontade da criança de forma a induzir-lhe sentimentos negativos e de rejeição relativamente ao outro progenitor não passe disso mesmo. Deste modo, a regulação do exercício das responsabilidades parentais deve ter lugar imediatamente após a rutura conjugal. O decurso do tempo pode significar o consolidar de uma situação de afastamento que depois é muito mais difícil de reverter. Na regulação do exercício das responsabilidades parentais, e no que à guarda dos filhos diz respeito, a primeira hipótese que deve ser sempre equacionada é a possibilidade do estabelecimento de uma residência alternada, de modo a que o quotidiano da criança continue a ser assegurado por ambos os progenitores que, não vivendo agora juntos, repartirão entre si os dias em que os filhos consigo permanecerão. Este regime de confiança partilhada, que encontra consagração legal no nosso sistema jurídico, é o que mais próximo fica da situação vivida pelas crianças enquanto os pais residiam juntos. Doutro modo, esta é, a meu ver, uma das formas mais eficazes de se prevenir situações de afastamento da criança de um dos progenitores mediante programação da sua vontade por parte do outro. Quero aqui fazer uma ressalva para que nenhuma dúvida reste, não estou a falar de situações em que a rejeição de um dos progenitores por parte da criança tem na sua génese casos de violência física, emocional ou de abusos sexuais. Nestas situações a única resposta possível é o afastamento do agressor e a suspensão dos contactos com o filho, pois a proteção da criança tal impõe. Retomando a linha de pensamento, apenas quando, pelos mais diversos fatores, não existirem condições para se estabelecer uma residência alternada se deve equacionar a possibilidade de uma residência única, mas, nestes casos, o regime de convívios com o outro progenitor deve ser o mais alargado possível, fugindo-se ao paradigma dos “pais de fim de semana”.
Como por exemplo?
Convívios com o progenitor não residente durante a semana e fins de semana mais alargados, por exemplo, de sexta a segunda, é o desejável. O superior interesse da criança passa por manter uma relação de proximidade com ambos os progenitores e, neste segmento, na decisão que recair sobre a qual dos progenitores deve ser atribuída a confiança da criança, a opção deve ser sempre por aquele que é mais facilitador dos convívios do filho com o outro. Estabelecido que seja o regime de convívios, qualquer incumprimento repetido do mesmo, na maior parte das vezes preditor de uma tentativa de separação da criança do outro progenitor, deve ser exemplarmente sancionado, nos moldes atrás referidos. A firmeza do tribunal nas suas decisões de fazer cumprir o regime fixado é o melhor caminho para evitar o afastamento da criança do outro progenitor, induzido e trabalhado pelo progenitor com quem reside. Doutro modo, a manipulação da vontade da criança no sentido de condicionar e influenciar os seus sentimentos tendo em vista criar na mesma desamor e, nos casos mais graves, até ódio pelo progenitor com quem não reside pode configurar uma situação de perigo, a convocar a abertura de um processo de promoção e proteção e a aplicação de medida protetiva, que pode passar pela entrega da criança a uma terceira pessoa, familiar ou não, mas de preferência com ligações afetivas à criança, de modo a afastá-la da esfera de influência do progenitor manipulador e a facilitar os contactos com o progenitor que se pretendeu expulsar da sua vida. Em situações limite, poderá até equacionar-se a aplicação de medida de acolhimento residencial em casa de acolhimento, o que aconteceu recentemente numa decisão da primeira instância, que depois veio a ser revogada pelo tribunal da Relação, mas a opção por esta medida extrema não é caso único nas decisões dos nossos tribunais.
Qual o papel da audição das crianças no processo de regulação parental? E em outros casos mais graves, como de abusos sexuais?
A participação e audição da criança nos processos que lhe digam respeito é um direito da mesma, consagrado na Convenção sobre os Direitos da Criança e também na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e na Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos da Criança. O Comité das Nações Unidas para os direitos da criança afirma que, “em vez de partir do princípio demasiado simplista de que a criança é incapaz de exprimir uma opinião, os Estados devem presumir que a criança tem, de facto, essa capacidade.” Este direito da criança está agora expressamente consagrado no nosso ordenamento jurídico interno e o RGPTC elege a audição obrigatória e a participação da criança como um dos seus princípios orientadores. Em face deste regime, todas as crianças, independentemente da sua idade, desde que tenham capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, são ouvidas pelo tribunal nos processos de regulação do exercício das responsabilidades parentais, tendo o legislador estabelecido uma presunção de que a criança com idade superior a 12 anos apresenta tal capacidade.
Mas existem exceções?
Este princípio geral só cede perante o superior interesse da criança, sempre que, em face deste, seja desaconselhável a sua audição. Não obstante, ouvir a criança não pode constituir apenas uma mera formalidade processual a cumprir, pois a sua opinião é sempre importante e deve ser tida em conta na decisão que vai ser tomada. Mas não se pode confundir o tomar em consideração a opinião da criança e o decidir-se segundo a sua vontade. Sobre a criança nunca pode recair o peso da decisão, esse cabe na íntegra ao tribunal, a opinião da criança releva, isso sim, para a determinação de qual o seu superior interesse e, nesta medida, para a decisão a tomar. À pergunta colocada respondo, pois, de modo absolutamente inequívoco, que o papel da audição das crianças no processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais é essencial.
E nos casos que envolvem contornos sexuais?
Quando em causa estão situações de abusos sexuais, a questão apresenta contornos diferentes. No processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais a criança deverá ser ouvida para que possa exprimir a sua opinião mas esta audição também pode acontecer para que o seu depoimento seja utilizado como meio de prova. No âmbito do processo-crime é esta última vertente a única relevante e, neste caso, impõe o Código de Processo Penal que, no âmbito do inquérito, à criança sejam tomadas “declarações para memória futura”, cujo objetivo é, por um lado, permitir que, de modo célere, se possa proceder à sua inquirição e, por outro, evitar que, mais tarde, em fase de julgamento, tenha, de novo, que ser recolhido o seu depoimento. As declarações prestadas nestes termos no inquérito podem depois ser consideradas como prova no âmbito do processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais e no processo de promoção e proteção, sem que seja necessário proceder de novo à recolha do seu depoimento, o que constitui uma novidade introduzida por estes diplomas, e que impõe, em defesa do superior interesse da criança, uma articulação entre os diversos processos. Este é, de facto, um aspeto que se mostra de acentuada relevância. A criança é uma vítima particularmente vulnerável e para sua proteção importa que se evite a sua inquirição repetida. Entre as várias entidades por onde passa, estima-se que uma criança vítima de abuso sexual tenha que relatar, em média, oito vezes o que lhe sucedeu. Sempre que tal acontece, a criança revive os abusos e o seu sofrimento renova-se. O impacto negativo e o efeito vitimizador são avassaladores. Pretendeu o legislador, ao estabelecer que as declarações prestadas para memória futura possam constituir meio de prova no âmbito dos processos tutelares cíveis e de promoção e proteção, concentrar no processo penal a obtenção dos elementos probatórios, que depois irão servir para os diversos processos a correr termos. Porém, fê-lo, a meu ver, de modo muito tímido e que, na prática, se tem revelado muito pouco eficaz. A defesa do superior interesse da criança obriga a que se estabeleçam regras claras e precisas que imponham que a sua audição seja concentrada num único ato, salvo em situações excecionais e devidamente caracterizadas.
Com a aplicação do “novo” regime tem-se implementado tal audição? Com que resultados práticos?
Diria que em alguns dos nossos juízos de família e menores a audição da criança no âmbito dos processos tutelares cíveis não tem tido lugar em situações que, em meu entender, a lei o impõe. Este é um dos aspetos legais que mais têm sido descurados e a audição das crianças, embora constitua imperativo legal, não tem estado no centro das prioridades de muitos magistrados. De notar que a audição da criança não acontece apenas nos processos em que os progenitores estão em litígio quanto à forma de regular o exercício das responsabilidades parentais, mas esta audição também se impõe quando os pais chegam a acordo. Mesmo aqui deve ser auscultada a opinião da criança para que ela possa pronunciar-se sobre os diversos aspetos do regime em que houve consenso dos pais. E tal deve acontecer tanto nos processos que correm termos no tribunal como também naqueles em que, havendo acordo, correm termos na Conservatória do Registo Civil. Nestes, o acordo alcançado pelos progenitores carece sempre da apreciação dos seus termos por parte do magistrado do MP que, antes de se pronunciar, deve proceder à audição das crianças envolvidas, desde que as mesmas tenham capacidade de compreensão para tal. O exercício do direito de audição da criança constitui um meio privilegiado de prossecução do seu superior interesse e por tal razão deve ser escrupulosamente cumprido, tal como todos os restantes direitos consagrados na lei.
Na maioria das vezes, o acordo entre os pais é o mais desejável?
O acordo entre os pais é sempre desejável, na medida em que tal significa que os mesmos colocaram de lado as suas divergências e, pelo bem-estar dos filhos, conseguiram chegar a um entendimento. Certamente que os filhos de pais que, embora separados, conseguem encontrar um espaço de consenso no que àqueles respeita serão crianças mais felizes. Estes são os pais que colocam os interesses dos filhos à frente dos seus próprios interesses e revelam importarem-se realmente com o seu bem-estar. As disputas, muitas vezes tormentosas, sobre a quem ficam confiados os filhos, qual o regime de convívios que deve ser fixado e o montante da prestação de alimentos transformam, na maior parte das vezes, a vida das crianças num verdadeiro inferno. Mas nem todos os acordos revestem estes contornos positivos. Situações existem em que um aparente consenso entre os pais pode não representar isso mesmo, mas apenas constituir a manifestação da vontade de um deles e a adesão do outro a essa vontade apenas porque, devido a fatores diversos, não consegue opor-se-lhe. Ocorrem casos em que o ascendente de um dos progenitores sobre o outro é muito grande, designadamente quando a montante existem situações de violência doméstica. Aqui a vítima, não raras vezes, encontra-se numa dependência emocional muito grande do agressor e tem sério receio de que novas formas de violência ocorram. Os progenitores, quando celebram um acordo, têm que estar livres na sua decisão e sempre que tal não aconteça os magistrados não o podem aceitar. Claro está que também devem ser recusados pelos magistrados todos os acordos estabelecidos entre os progenitores que não satisfaçam os interesses do filho, designadamente quando, sem justificação, sejam muito restritivos dos contactos da criança com aquele com quem não reside ou que, de alguma forma, faça depender esses contactos do consentimento e disponibilidade do progenitor a quem a criança está confiada. Normalmente, este tipo de acordo é preditor do início de uma campanha tendente a afastar a criança daquele com quem não reside.
Tem escrito sobre esta área artigos e livros (“Poder Paternal e Responsabilidades Parentais”). Num artigo de 2014 sobre “O crime de subtração de menor” concluiu que “a corrente jurisprudencial que se vem formando vai exatamente no sentido de uma interpretação muito restritiva daqueles conceitos [crime de subtração de menores] e, a manter-se a tendência, muito poucas serão as condutas do progenitor inadimplente suscetíveis de integrar a prática do ilícito penal”. Quatro anos passaram, alguma coisa mudou?
Não, nada mudou. De há quatro anos a esta parte são muito raras as decisões dos nossos tribunais superiores sobre esta matéria e as que foram proferidas não revelam qualquer evolução jurisprudencial. Esta escassez de recursos reflete bem o facto de pouco se recorrer à tutela penal para sancionar as condutas em causa.
Numa nota biográfica sua é referido que nos últimos anos tem colaborado com associações em ações de formação tendentes ao combate e erradicação em Portugal da mutilação genital feminina. A Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto, autonomizou o crime de mutilação genital feminina e criou os crimes de perseguição e casamento forçado e alterando os crimes de violação, coação sexual e importunação sexual. Nesta matéria, a legislação em Portugal e sua consequente aplicação, e tendo em conta a sua ligação “ao terreno”, tem conseguido alterar estas realidades?
Muito pouco tempo passou para que se possa dar uma resposta definitiva à questão colocada. As alterações legais mencionadas revestiram-se de grande importância e a criação dos novos ilícitos de mutilação genital feminina, perseguição e casamento forçado constituíam um imperativo para Portugal, também por força da sua adesão à Convenção de Istambul. Porém, a criminalização de determinadas condutas não tem a virtualidade de, no imediato, alterar as mentalidades. Estas só o tempo se encarrega de modificar e muitas vezes é um processo para uma ou mais gerações. Estou a pensar em concreto na mutilação genital feminina e no sofrimento que tal prática tem provocado a mulheres e meninas desde tempos imemoriais. A Organização Mundial de Saúde calcula que cerca de 100 a 140 milhões de mulheres e raparigas foram submetidas à MGF e que cerca de 3 milhões estão em risco todos os anos. Mas esta é uma realidade que, ao contrário dos que se possa pensar, nos é muito próxima e não acontece só em países longínquos de África. O Parlamento Europeu estima a existência de meio milhão de meninas e mulheres vítimas de MGF na União Europeia e que cerca de 180.000 poderão estar em risco. Em Portugal, os números mais recentes apontam no sentido de que no nosso país residam cerca de 5000 meninas e mulheres submetidas a mutilação. A criação de um ilícito próprio para a incriminação desta prática nefasta – que anteriormente integrava o crime de ofensas à integridade física – constituiu um avanço importante, pois definiu de forma inequívoca quais os procedimentos que integram a prática do crime e agravou a pena do mesmo. Por outro lado, a criação do ilícito constituiu uma manifestação clara do Estado de não permitir que tais procedimentos passem impunes. O nosso país é um destino de muitos emigrantes oriundos de países onde se pratica o corte dos genitais femininos e, por isso, é grande o risco de meninas e mulheres residentes em Portugal serem submetidas a tal prática, quer no nosso próprio território quer nos países de origem.
Mas há casos que chegam aos tribunais.
Sim, mas, por circunstâncias várias, nenhum deles foi submetido a julgamento. Um dos maiores obstáculos era o prazo de prescrição do procedimento criminal, demasiado curto para o ilícito em apreço, pois a prática em causa acontece normalmente em meninas, cada vez mais em idades precoces e até em recém-nascidas. Quando as situações eram detetadas pelas autoridades, normalmente já na juventude, o respetivo prazo prescricional encontrava-se ultrapassado. As alterações legais introduzidas em 2015 vieram modificar esta realidade e atualmente, se a vítima for menor, o procedimento criminal não se extingue por efeito da prescrição, antes de a ofendida perfazer 23 anos.
De salientar ainda que a conduta integradora do crime de mutilação genital feminina pode ser objeto de punição nos tribunais portugueses mesmo que a sua prática tenha ocorrido fora do nosso território. Dos casos que conheço, a sujeição das meninas ao corte dos genitais ocorreu sempre no país de onde eram originárias e, à exceção de um deles, que foi arquivado por falta de indícios sobre a autoria do ilícito, todos os outros foram arquivados porque, quando chegaram ao conhecimento das autoridades, havia já decorrido o prazo de prescrição do procedimento criminal. A alteração legislativa foi, também neste aspeto, absolutamente fundamental. Mas o trabalho para a mudança de mentalidades e para a erradicação desta prática nefasta ainda se encontra no princípio e muito trabalho há a fazer. A sociedade tem que se mobilizar neste combate e a nova legislação constitui apenas um passo no longo caminho que ainda há a percorrer.
Considera que os Direitos das Crianças já sejam uma prioridade em Portugal?
A resposta é claramente afirmativa e cada vez mais é evidente essa prioridade. Desde a Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989 e que Portugal ratificou em setembro de 1990, sendo um dos primeiros países a fazê-lo, que passos firmes e definitivos têm sido dados na defesa dos direitos das crianças. A última alteração da Lei Tutelar Educativa e da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, a que se somou o RGPTC e o Regime Jurídico do Processo de Adoção, constituem uma ampla reforma nesta matéria e um reforço claro de tais direitos. Mas muito ainda há a fazer na salvaguarda intransigente dos direitos das crianças e está na altura de pensarmos no patamar seguinte dessa consagração. A par da criação do Provedor da Criança, que tarda, considero que o reconhecimento constitucional dos princípios do superior interesse da criança e da audição e participação da criança nas decisões que lhe dizem respeito constitui o passo decisivo que falta para colocar a defesa dos direitos da criança ao nível a que deve estar.
Neste campo do Direito da Família, Crianças e Jovens, o que é que Portugal tem a aprender com a atuação dos vários operadores judiciais de outros países lusófonos?
Temos sempre muito que aprender com a legislação e prática judiciária de outros países e se falamos de países a que estamos unidos culturalmente e pela língua, essa é uma realidade muito efetiva. Estou a lembrar-me que ainda muito recentemente tivemos no CEJ como oradora, numa ação de formação da jurisdição de família e crianças, uma senhora advogada brasileira, doutoranda em psicologia judiciária, que nos veio falar sobre alienação parental, realidade esta que, ao contrário do que acontece no nosso país, se encontra legislada no Brasil, em lei própria para o efeito. Foram preciosos os ensinamentos que retirámos da sua palestra.
Doutro modo, são próximos os contactos que o CEJ tem com os PALOP, com os quais têm sido estabelecidos diversos acordos bilaterais visando a formação de futuros magistrados daqueles países. Tive o grato prazer de, em 2016, dar algumas sessões de direito da família e das crianças a um grupo de magistrados de Cabo Verde, no âmbito de um curso ministrado à luz da lei deste país, e a troca de experiências e conhecimentos foi muito enriquecedora. Três magistrados de São Tomé e Príncipe integram atualmente o curso normal de formação de magistrados portugueses e, também neste âmbito, são recíprocos os ensinamentos.