“Teríamos muitas vantagens na criação de um sistema único de registo de marcas de países onde se fala português”
A J. Pereira da Cruz é um dos escritórios de consultoria mais conceituados em Portugal que trabalha a Propriedade Intelectual (que engloba a Propriedade Industrial e Direitos de Autor, entre outros). Nesta entrevista, João Pereira da Cruz, licenciado pelo Instituto Superior Técnico de Lisboa em 1978 e membro efetivo da Ordem dos Engenheiros, a par de Maria Cruz Garcia, licenciada em Direito pela Universidade Católica Portuguesa de Lisboa em 2004, ambos da estrutura acionista da J. Pereira da Cruz, abordam a transposição para a legislação nacional de diretivas europeias, traduzida num novo Código da Propriedade Industrial, o desenvolvimento desta área no país e a Lusofonia
Atualmente, em Portugal, considera que haja uma cultura de propriedade industrial? E o poder político, encontra-se suficientemente consciencializado para estas questões?
MCG - A nossa experiência na J. Pereira da Cruz é que a cultura de propriedade industrial está a evoluir, ainda que seja vista por muitas empresas – sobretudo start-ups – como um custo e não um investimento.
JPC - Cada vez há mais empresas a não esquecerem a investigação e o desenvolvimento ao prepararem os seus orçamentos anuais. No entanto, neste capítulo ainda há muito por fazer, pelo que é necessário sensibilizar os empresários nesse sentido. De resto, o poder político tem recorrido ao nosso know-how na matéria para trabalhar alguns temas. Consideramos que os decisores políticos devem ir para além dos conceitos de “desenvolvimento” e “inovação” e retirarem consequências num plano prático, nomeadamente, alertando o mercado que a única forma de proteger a inovação é através de direitos de propriedade industrial e incentivando essa prática com políticas concretas, como, por exemplo, incentivos fiscais para as empresas que apostam na proteção da sua PI.
Foi criado o Tribunal da Propriedade Intelectual em 2011. Que avaliação faz deste tribunal? E do Centro de Arbitragem?
JPC - Acreditamos que todos estão apostados em fazer o seu melhor (a existência de um tribunal especializado com juízes conhecedores da matéria é já, em si, um pequeno grande passo), mas existe, como é normal, espaço para melhorar. A J. Pereira da Cruz está sempre disponível para auxiliar o trabalho de todos os que estão envolvidos nestas matérias e está muito consciente dos desafios bem como das dificuldades que todos estão a passar.
Que avaliação faz do novo Código de Propriedade Industrial (CPI)?
JPC - O novo CPI é, em certas matérias, um pequeníssimo avanço relativamente ao que temos atualmente, mas, ainda assim, ficou muito aquém das nossas expectativas e daquilo que várias entidades referiram como sendo importante aquando da elaboração do Código. Nessa altura, foram chamadas a fazer parte de uma comissão com vista à preparação do CPI, para além do Ministério da Justiça e do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), diversas entidades diretamente envolvidas no setor: CIP – Confederação Empresarial de Portugal, APIFARMA – Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica, APOGEN – Associação Portuguesa de Medicamentos Genéricos e Biossimilares, Ordem dos Advogados, Ordem dos Solicitadores, ACPI – Associação Portuguesa dos Consultores em Propriedade Intelectual, AIPPI (delegação nacional da Associação Internacional para a Proteção da Propriedade Intelectual), Câmara de Comércio Internacional (CCI), Associação Portuguesa dos Mandatários Europeus de Patentes, CENTROMARCA – Associação Portuguesa de Empresas de Produtos de Marca, Juízes do Tribunal de Propriedade Intelectual, representantes da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, etc.. E é com alguma tristeza que constatamos que, no diploma final, ainda assim foram poucas as sugestões acolhidas de quem realmente conhece a matéria e trabalha diariamente com direitos de propriedade industrial.
MCG - A sensação que temos é que às vezes se perde o foco de que a PI deve, em primeiro lugar, servir para proteger a indústria nacional.
Considera que o projeto do novo Código da PI corresponde a uma correta e completa transposição das diretivas comunitárias que o mesmo visa transpor?
MCG - Consideramos que transpôs aquilo que, pela Diretiva, era imperativo que transpusesse. Contudo, ao transpor (praticamente) apenas os aspetos referidos na Diretiva e não tendo ido mais longe, aproveitando para se fazer uma verdadeira revisão do Código e apenas tirando do modelo europeu as consequências necessárias, acabou por criar idiossincrasias que dificilmente se compreendem (a título de exemplo, referimos o tratamento diferenciado que é dado em relação à obrigatoriedade de uso de uma marca, no âmbito de um processo de reclamação e num processo de recusa provisória). Não faz qualquer sentido a disparidade de critérios.
Poderia este novo Código ir mais longe? Em que matérias?
JPC - Poderia e deveria. Aliás, tal foi sugerido e amplamente discutido na comissão criada para a elaboração do código e na qual participaram três sócios do nosso escritório: João Pereira da Cruz, enquanto presidente da ACPI, Nuno Cruz, em representação da CCI, e a Maria Cruz Garcia, enquanto secretária-geral da AIPPI. Foram apresentadas diversas propostas em reunião e por escrito à tutela (de teor eminentemente técnico), que infelizmente não foram tidas em consideração.
Quais as falhas e o que poderia ser alterado?
JPC - Seria ótimo, antes de mais, que, à semelhança de vários outros países, se dignificasse a profissão de Agente Oficial da Propriedade Industrial (AOPI), como “o” verdadeiro especialista em Propriedade Industrial. De algum modo, entre o Simplex e a não alteração do código relativamente ao papel dos AOPI, criou-se a ideia de que tudo isto é muito fácil e pode ser feito online pelos próprios requerentes. O que não é, de todo, verdade.
MCG - Há que ter consciência de que, ao contrário da maior parte dos outros registos (predial, automóvel, etc.), o registo de direitos de PI é constitutivo do próprio direito e não meramente declarativo. Neste âmbito, só quem protege/regista é que é dono/titular de alguma coisa. Caso contrário, tem-se apenas uma boa ideia que se pode partilhar com o mundo, sem que daí se tire qualquer benefício. E, tratando-se de um registo constitutivo do direito em si, a forma como é protegido é determinante para o seu âmbito de proteção. Daí que não seja indiferente ter uma marca registada por profissionais ou uma invenção redigida e patenteada por especialistas da área. Não é mesmo a mesma coisa, a Propriedade Industrial não pode ser considerada uma simples “commodity”. Além da dignificação do papel de AOPI, consideramos que, por uma questão de coerência do sistema, deveriam ter sido adotadas muitas mais medidas de pendor eminentemente técnico (como referimos anteriormente) que viessem acautelar devidamente os direitos das empresas portuguesas.
JPC - Não nos podemos esquecer que o tecido empresarial português é essencialmente constituído por Pequenas e Médias Empresas (PME) (de uma dimensão diferente das PME dos grandes países europeus), pelo que teria sido fundamental aproveitar esta oportunidade para adaptar a legislação de PI à nossa realidade económica.
A proteção ora prevista para segredos comerciais era essencial?
JPC - Era, sem dúvida. Os segredos comerciais pretendem proteger determinadas realidades que são fundamentais para um negócio e que não podem ser protegidas por outros direitos de PI, sob pena de se tornarem públicas.
MCG - O melhor exemplo deste tipo de proteção é a receita da Coca-Cola, que, se em vez de um “trade secret” tivesse sido patenteada, há muito que a empresa já teria perdido o exclusivo da sua produção, uma vez que as patentes, por regra, são válidas apenas por 20 anos e depois caem no domínio público. Com um segredo comercial isso não acontece porque a “receita” da Coca-Cola nunca foi divulgada (como teria que ser se tivesse sido patenteada). De qualquer forma, não são todas as realidades que são suscetíveis de proteção por esta via…
A propriedade industrial é essencial para a evolução da economia digital?
MCG - A PI é essencial para a evolução da economia, ponto.
JPC - Digital ou não, está mais do que provado que os índices de PI estão diretamente relacionados com o nível de desenvolvimento económico de determinadas regiões. Numa era em que a economia assenta no conhecimento e na inovação, a PI desemprenha um papel primordial na construção desse desenvolvimento.
A inovação e desenvolvimento e a sua respetiva proteção via propriedade industrial interligam-se com a garantia da qualidade?
MCG - São conceitos muito diferentes e que estão muitas vezes ligados. Diríamos antes que é muito mais fácil o mercado confiar na qualidade e fiabilidade de uma marca registada, cuja origem é conhecida.
O que podem fazer eventos como a Web Summit pela Propriedade Industrial?
MCG - Na J. Pereira da Cruz consideramos que este tipo de eventos são ótimos para o nosso país e, por isso, temos feito questão de estar presentes, desde a primeira edição.
JPC - Relativamente à PI especificamente, depende muito das conclusões práticas que forem daí retiradas. Uma vez mais, e por experiência própria de anos anteriores, não há discurso ou “pitch” em que não se ouça “I&D”. Contudo, raramente é explicado às empresas portuguesas, e às start-ups em especial, que é fundamental que protejam a sua PI de forma a serem, de facto, proprietárias de algo que lhes trará rendimentos no futuro.
MCG - Lá está, é preciso explicar que a PI é um investimento fundamental para mais tarde se colherem os frutos do investimento feito em desenvolvimento e inovação. Por outras palavras, a Web Summit celebra os criadores, mas pouco se fala no quão importante é salvaguardar os interesses dos seus autores, protegendo a propriedade de quem cria.
Na Lusofonia, o que podem os vários países fazer neste campo no sentido de desenvolver e fortalecer a Propriedade Industrial? E o que têm a ganhar em fazer isso em conjunto?
JPC - Parece-nos que teríamos muitas vantagens na criação de um sistema único de registo de marcas de países onde se fala português, até como forma de incrementar as relações comerciais entre estes países. Alguns esforços têm sido feitos nesse sentido, mas, de acordo com as últimas informações que temos, o Brasil (que historicamente não é muito “dado” a acordos internacionais nesta matéria) tem de alguma forma criado “entraves” à implementação de um sistema deste género.
MCG - Relembramos que este sistema não seria “inédito” nesta matéria, já que coexistem muitos outros sistemas em que, por uma razão ou por outra, vários países celebraram pactos para facilitar e promover a proteção da PI nesses territórios. Vejamos, a título de exemplo, o sucesso do sistema da marca da União Europeia.
JPC - As “nossas” associações, que visam proteger a PI continuam a apoiar e a tentar impulsionar a criação da chamada “marca lusófona”. Veremos o que o futuro nos trará.