A estabilidade legislativa e fiscal “é talvez a questão mais complicada para um empresário ou um investidor em Portugal”
Presidente da Associação Portuguesa de Business Angels (APBA), vice-presidente da Federação Europeia Business Angels Europe e managing partner da Toplever, João Trigo da Roza é ainda sócio fundador de um veículo de investimento em start-ups, a Brains2Market. Formado em Engenharia Civil, em 1982, foi CEO da Portugal Telecom Multimedia.com, CEO da Telepac (ISP), presidente do portal Sapo, administrador da PT Ventures e de várias empresas de telecomunicações e serviços em Angola, Moçambique, Brasil e Macau. Foi ainda administrador da Expo Urbe, empresa responsável pelo projeto de desenvolvimento urbano e imobiliário associado à Exposição Mundial de Lisboa de 1998
Como se encontra a atual fase do capital de risco em Portugal?
A palavra capital de risco engloba várias realidades, uma delas é aquilo que se designa em inglês de venture capital, que é o investimento em early stage e vai desde a fase semente (seed), em que existe só uma ideia ou projeto, até à fase de crescimento (scale up), em que a start-up entra numa fase de crescimento. O termo de capital de risco também se refere a operações com empresas mais consolidadas. Neste caso, estamos a falar de investimentos para participação, desenvolvimento ou reestruturação por parte de fundos de private equity. Sendo as duas realidades muito diferentes, o foco das minhas respostas será mais na lógica do capital de risco para start-ups em fase early stage a partir da minha vivência como business angel. Em alguns casos, abordarei a temática dos fundos numa lógica mais de private equity, aproveitando a minha experiência como partner da Toplever, firma que se especializou no apoio estratégico a este tipo de fundos. O capital de risco, em sentido lato, está numa fase de desenvolvimento e profissionalização em Portugal, em que entidades como os Business Angels, os fundos de venture capital e de private equity estão bastante ativos. Na última década, houve uma evolução forte no sentido do reconhecimento destes operadores, enquanto fonte de financiamento preferencial e em alternativa à banca comercial e com a vantagem de os investidores desempenharem um papel ativo no aconselhamento à gestão.
A atual situação económica do país poderá originar a criação de novas oportunidades de negócio para investidores especializados em capital de risco?
O país vive numa fase de maior confiança, o que cria um ambiente mais positivo para o investimento. Na fase early stage a dinâmica é grande e a Web Summit veio dar uma grande visibilidade ao País, confirmando-o como destino credível para lançar uma start-up de natureza tecnológica. No que respeita ao private equity, existem também oportunidades muito interessantes, seja numa lógica de investir em pequenas e médias empresas (PME) de grande potencial que se podem internacionalizar, seja numa lógica de reestruturação e de turn around.
Considera que a cultura portuguesa, tendencialmente adversa ao risco, é um entrave à proliferação da indústria em capital de risco?
Sem dúvida que a cultura portuguesa e, em larga medida, a da Europa continental tem dificuldade em lidar com o risco e sobretudo tende a estigmatizar aqueles que em algum momento tiveram um falhanço. De qualquer modo, também se nota uma evolução de atitude e hoje existe uma cultura de mais tolerância ao risco. A lógica do capital de risco tem que ser a de gestão de um portfólio, em que sabemos que há alguns projetos que podem não ser bem-sucedidos, mas haverá uns quantos que asseguram a rentabilidade do investimento do portfólio.
O que falta ao tecido empresarial português para aproximar o volume de investimento em capital de risco da média europeia?
Primeiro de tudo, falta capital, o que é um tema crónico em Portugal e que a crise financeira recente veio agravar. Esta é grande dificuldade e que torna muito difícil angariar capitais em Portugal para o capital de risco. Quem quiser lançar um fundo tem que fazer o sourcing da maior parte do capital no estrangeiro. Em particular, julgo que ainda há algumas falhas de mercado, nomeadamente na fase de “prova de conceito”, antes de o produto estar no mercado, em que o risco é muito elevado e é mais difícil os investidores entrarem. Também na fase de scale-up e de apoio à internacionalização, em que os fundos do Estado têm dificuldade em coinvestir, pois os seus fundos europeus destinam-se a ser aplicados em determinadas regiões, existindo poucos fundos nacionais a atuar.
A Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) tem criticado o peso excessivo da concessão de empréstimos, nomeadamente através de suprimentos, às empresas participadas pelas capitais de risco, (…) “muito próxima da atividade bancária”, em vez de se constituir essencialmente como um instrumento de reforço de capitais próprios. Qual a sua opinião?
Conheço melhor a realidade dos fundos que são aplicados pelos Business Angels e fundos de venture capital que têm uma lógica de participação na equity e de partilha de risco. Nestes casos não se aplica a lógica de empréstimo bancário. Se existirem perdas, o capital é consumido e se houver mais-valias todos ganham na proporção da sua participação.
As recentes estatísticas notam que o investimento em capital de risco no setor imobiliário ganhou um maior peso no último ano, em resultado da dinâmica recente do mercado imobiliário em Portugal. Considera que este mercado ainda permite “geração de elevado valor acrescentado”?
Aqui estamos a falar em fundos imobiliários e não na lógica de capital de risco para apoio a start-ups a que me referia anteriormente. Sem dúvida que o mercado aqueceu bastante nos últimos dois anos e assistimos a entradas de fundos e investimentos com uma dimensão a que o nosso mercado não estava habituado. De qualquer modo, a resposta à sua questão dependerá de os fundamentais da economia continuarem a sustentar o crescimento dos vários subsetores do imobiliário. Se em 2019 a economia continuar com a mesma tração (e já existem algumas previsões de arrefecimento), julgo que ainda há áreas que podem crescer, como os escritórios e as residências para estudantes.
Que avaliação faz do surgimento de instrumentos híbridos, tais como os que misturam capitais próprios com dívida ou obrigações convertíveis?
São instrumentos que podem ser úteis em determinados casos e a sua utilização mostra um certo grau de sofisticação do mercado. Estes instrumentos podem permitir uma melhor gestão do risco e facilitar a decisão de investimento, dando a possibilidade ao investidor de exercer as opções de entrar no capital em função do desempenho da empresa.
Os fundos estrangeiros têm interesse por Portugal? E quanto aos demais países lusófonos?
Portugal é uma economia demasiado pequena para despertar um interesse sistemático pelos grandes fundos estrangeiros. Se estivermos a falar de private equity, uma operação de €100 milhões é uma operação grande em Portugal (tipicamente, as operações são de poucas dezenas de milhões, o que é um ticket muito pequeno para os grandes fundos internacionais). Daí que só em oportunidades muito específicas é que estes fundos estão presentes em Portugal. Numa lógica de venture capital, os fundos internacionais olham para os projetos portugueses de maior potencial numa lógica de os escalar internacionalmente. Provavelmente, estes fundos vão solicitar aos empreendedores que mudem a sua jurisdição para outros mercados, podendo, no entanto, manter parte da operação em Portugal.
Há falta de empresas com dimensão para serem adquiridas?
Numa lógica de investidores de early stage, nos últimos anos começaram a aparecer empresas com muito mais potencial e em maior quantidade, muitas vezes enquadradas em programas de aceleração. Será sempre bom haver mais deal flow, mas temos que reconhecer que este melhorou muito nos últimos anos. Numa lógica de private equity, as oportunidades existem a vários níveis, como sejam as PME que podem ser transformadas em campeões internacionais. Já quando falamos de grandes empresas (faturações da ordem de várias centenas ou milhares de milhões de euros), chegamos à conclusão que este mercado praticamente não existe em Portugal.
A nível de clientes, têm mais relevância os nacionais ou internacionais?
Se estamos a falar de uma empresa como a Toplever, o perfil dos seus clientes são os grandes fundos de private equity. Devido à falta de capital nacional a que referi, estes fundos são normalmente internacionais. De qualquer modo, existem fundos nacionais com um nível de profissionalização elevado e que desempenham um papel relevante na dinamização e modernização do nosso tecido de PME.
Considera que o momento pós-crise trouxe fundos institucionais, com maior credibilidade e menor oportunismo?
Penso que a própria crise obrigou a “separar o trigo do joio” e a mostrar que a sustentabilidade do investimento não é compatível com oportunismo.
Quais as áreas de investimento mais significativas? Energia e turismo?
É difícil identificar uma, pois em todas as áreas há oportunidades. De qualquer modo, as oportunidades tendem a estar ligadas a atividades em que a economia ganhou algum grau de especialização ou sofisticação. Nessa perspetiva, o turismo e a energia, como sejam as energias renováveis ou soluções de eficiência energética, podem ser oportunidades interessantes.
Quais as áreas nas quais se perspetivam grandes oportunidades futuras? Dívida empresarial e reestruturação?
O tema da reestruturação e da dívida vão estar na ordem do dia nos próximos anos. É uma área em que ainda existem poucos fundos e há muito trabalho a fazer com as dívidas (e os ativos associados) que os bancos, no processo de limpeza do seu balanço, vão continuar a vender. Para além da reestruturação e negociação das dívidas, estamos a falar também de reorganização e reposicionamento de empresas que as tornam viáveis.
E posições de controlo em empresas, pode ser interessante?
Depende da fase de investimento. Na fase de early stage, os business angels e os fundos não pretendem ter o controlo, para não cortar a dinâmica empreendedora dos fundadores da empresa. Os fundos de private equity normalmente têm interesse em ter o controlo para poder reestruturar as empresas. Já para alguns grandes fundos internacionais, como sejam fundos de pensões, mais que o controlo, o importante é ter um yield para o capital aplicado.
Há estabilidade legislativa e fiscal?
Essa é talvez a questão mais complicada para um empresário ou um investidor em Portugal. As mudanças de Governo ou mesmo as mudanças de secretário de Estado dentro de um Governo são sinónimo de alterações legais e fiscais, em matérias que se deveriam manter estáveis por períodos alargados. Esta instabilidade destrói muito valor, inviabiliza muitos projetos e desmobiliza os mais aptos que possuem alternativas em outras geografias. Basta ver o que se passou recentemente com o IRS… Outro exemplo é o caso dos business angels, em que os enquadramentos fiscais para o seu investimento têm variado ao longo do tempo. Hoje, há um enquadramento teoricamente mais favorável, mas ele não funciona na prática, pois não reconhece os investimentos que são feitos através dos veículos de investimento dos business angels que o próprio Estado incentivou.
O possível fim das taxas de juro atrativas é positivo?
O fim de taxas de juros baixas é sempre penalizador do investimento, pois os investidores vão exigir taxas de retorno mais altas, o que pode inviabilizar alguns novos projetos. De qualquer modo, do ponto vista do equilíbrio macroeconómico, temos que perceber que as taxas não se podem manter ad aeternum em valores próximo do zero...
Como se perspetiva o ano 2019?
É um ano de expetativa. Do ponto de vista internacional, há muita coisa a acontecer que pode impactar o país: o Brexit, a política comercial dos Estados Unidos, os bancos centrais com políticas mais restritivas. A nível nacional, vai ser um ano em que os decisores políticos vão estar mais concentrados no calendário eleitoral do que na resolução dos problemas concretos e nas reformas estruturais da economia. Resta-nos a resiliência das nossas empresas e famílias e fazer votos para que tudo corra bem...
Algumas start-ups têm falido. Este ainda é um investimento interessante para o capital de risco?
Sem dúvida. Faz parte do modelo algumas start-ups falirem. Também temos algumas start-ups em Portugal que já atingiram o estatuto de “unicórnio”, o que seria impensável há alguns anos. Investir neste ecossistema só faz sentido numa lógica de portfólio em que os casos de sucesso compensam os insucessos.
A CMVM indicou em dezembro que o valor gerido pelo capital de risco aumentou 1,2% em 2017, para 4,5 mil milhões de euros, montante este que corresponde a 2,3% do Produto Interno Bruto a preços correntes, sendo que a evolução resulta sobretudo da performance dos fundos de capital de risco. Como vê estes dados do setor?
O número traduz uma evolução positiva, que eventualmente pode ser explicada pelo bom desempenho dos fundos, associado à performance positiva da economia. De qualquer modo, existe outro indicador ao qual devemos estar atentos, que é o volume de investimento no ano, e aqui houve um ligeiro decréscimo (1,1%), quando comparado com os anos anteriores, que foram sempre de crescimento. Temos que analisar estes dados a partir de séries longas e não olhando só para um ano, mas este abrandamento é algo a que devemos estar atentos.
Quais os problemas estruturais que podem ser encontrados em Portugal?
Do ponto de vista do investimento, o maior problema é a escassez de capital. Como referi, é um tema crónico em Portugal. A crise financeira internacional recente, que em Portugal se transformou numa crise da dívida pública e do setor bancário, pôs a descoberto as nossas fragilidades enquanto economia, tendo contribuído para destruir uma parte do goodwill que havia sido construído no pós-adesão à União Europeia.
Que relações mantêm com outras associações do género na Lusofonia?
A APBA não só mantém excelentes relações de colaboração com as suas congéneres do espaço lusófono como, em alguns casos, ajudou ao seu lançamento. Em particular, temos uma relação estreita com os “Anjos do Brasil” e estamos agora a apoiar o lançamento da Associação dos Business Angels em Moçambique.
Quais as principais preocupações das entidades que constituem a APBA?
O maior desafio que temos é o de apoiar as start-ups no seu processo de internacionalização, para que possam ter uma escala adequada a nível global. Nesse sentido, participamos na Federação Europeia dos Business Angels Europe (BAE) e criámos um clube de investidores internacionais, o BAE Club, para podermos apoiar as start-ups a expandirem para outros mercados.
Que papel devem ter as universidades neste campo?
As universidades podem ter um papel muito relevante. É nas universidades que está parte significativa do nosso capital intelectual. Hoje, existem universidades com excelentes programas de empreendedorismo, mas ainda há um caminho grande para fazer ao nível da transferência tecnológica para levar a “massa cinzenta” para o mercado.
Que papel deve desempenhar o Estado?
O Estado, primeiro de tudo, deve ter um papel relevante no que respeita ao enquadramento legal e fiscal. No caso de haver falhas de mercado, o Estado também deverá intervir. O que sucedeu no passado é que o Estado (que tem vários atores nesta área) muitas vezes acabou por competir com operadores privados, em vez de se complementar. Julgo que, hoje em dia, existe mais consciência dos vários agentes do Estado sobre o papel que devem desempenhar e um diálogo mais próximo com os outros atores do “ecossistema”.
E qual o papel de uma Sociedade de Advogados no capital de risco?
É muito relevante. Desde as questões relativas à formação de fundos de investimento (regulamentos, registo na CMVM, ...), aos acordos societários entre empreendedores e investidores, passando pelas questões fiscais, há um universo de matérias que podem ser muito interessantes para um gabinete de advogados. Felizmente, existem já hoje vários gabinetes que se dedicam a estes temas com grande profissionalismo.