Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-06-2014, referente ao processo 14/07.0TRLSB.S1, Conselheiro Raul Borges
JOÃO LUZ SOARES
Advogado na RSA-Raposo Subtil e Associados - Sociedade de Advogados, SP, RL
A abordagem do branqueamento de capitais, quer partindo do enfoque preciso no modelo de ilícito típico, objetivo e subjectivo, previsto no artigo 368.º-A do Código Penal, quer partindo daquilo que é o quadro legal de consideração do modelo de prevenção, agora previsto na Lei 87/2017, tem que assentar num lastro mais profundo consubstanciado, também, no contributo jurisprudencial, definidor do estado de arte do tratamento jurídico do fenómeno.
Assim, pretende-se analisar o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-06-2014, referente ao processo 14/07.0TRLSB.S1, relator Raul Borges, partindo daquilo que são os patamares abordados pelo referido aresto, i.e. Branqueamento - Criminalidade organizada – Globalização; Aplicação da lei no espaço; Bem jurídico protegido; Conexão entre branqueamento e ilícito típico precedente (autoria); Pressuposto: o crime/facto precedente; Punição do auto branqueamento, em direcção a uma reflexão crítica sobre as fragilidades da nova Lei 83/2017 e, claro, aquilo que é a necessidade de um manual de prevenção de branqueamento de capitais que, partindo do apport teórico, seja, sobretudo, um contributo prático de identificação e resolução dos problemas e superação dos desafios existentes.
1. Introdução: o crime de branqueamento de capitais
O primeiro passo é claro e relaciona-se com a assunção do próprio conceito de branqueamento de capitais e com a sua consagração primária no Código Penal. É que parece grassar alguma confusão entre aquilo que é a precisa previsão do ilícito criminal, no artigo 368.º-A do Código Penal, e aquilo que é um modelo/patamar de prevenção do fenómeno, com um modelo de ilícitos e sancionatório próprio, previsto na Lei 83/2017. Mas esta introdução, até pela exiguidade do espaço, será sempre norte de referência nos comentários infra oportunamente delineados.
O branqueamento de capitais enquanto fenómeno é a transformação ilícita dos proventos resultantes de atividades ilícitas, que visam a dissimulação da origem ou do proprietário real dos fundos, em capitais reutilizáveis nos termos da lei, dando-lhes uma aparência de legalidade. O processo engloba, assim, três fases distintas: a fase de colocação (placement) onde os bens e rendimentos são colocados nos circuitos financeiros e não financeiros; a fase de circulação (layering) onde os bens e rendimentos são objeto de múltiplas e repetidas operações, com o propósito de os distanciar da sua origem criminosa, apagando (branqueando) os vestígios da sua proveniência e propriedade; e, por último, a fase de integração (integration) onde os bens e rendimentos, depois de reciclados, são reintroduzidos nos circuitos económicos legítimos (por exemplo, através da sua utilização na aquisição de bens e serviços).
A análise terá que sempre iniciar pelo número 1 do referido artigo, que estipula que “Para efeitos do disposto nos números seguintes, consideram-se vantagens os bens provenientes da prática, sob qualquer forma de comparticipação, dos factos ilícitos típicos de lenocínio, abuso sexual de crianças ou de menores dependentes, extorsão, tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, tráfico de armas, tráfico de órgãos ou tecidos humanos, tráfico de espécies protegidas, fraude fiscal, tráfico de influência, corrupção e demais infrações referidas no n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 36/94, de 29 de setembro, e no artigo 324.º do Código da Propriedade Industrial, e dos factos ilícitos típicos puníveis com pena de prisão de duração mínima superior a seis meses ou de duração máxima superior a cinco anos, assim como os bens que com eles se obtenham”. Este número 1 funciona como previsão-elenco ou previsão catálogo, sendo que como refere MIGUEZ GARCIA1, “As principais dificuldades práticas na aplicação do artigo 368.º-A não decorrem dos factos do catálogo, mas do princípio do lugar da proveniência, uma vez que sem esta determinação será bem difícil a comprovação do facto prévio. Se apenas se provar que a vantagem foi adquirida através de um crime, mas não que este é um crime de catálogo, o crime de branqueamento não fica preenchido. Referimo-nos apenas às dificuldades prático-probatórias, naturalmente, por ser irrelevante, no plano típico, o local do cometimento do crime precedente, atento o disposto no n.º 4: a punição tem lugar ainda que os factos que integram a infração subjacente tenham sido praticados fora do território nacional, ou ainda que se ignore o local da prática do facto ou a identidade dos seus autores (…)”. No mesmo sentido, Paulo PINTO DE ALBUQUERQUE2 refere que “A enumeração dos crimes precedentes conjuga-se, por um lado, com as infrações referidas no art 1 da Lei 36/94, de 29-09 e completa-se com os factos ilícitos típicos puníveis com pena de prisão de duração mínima superior a seus meses ou de duração máxima superior a cinco anos”. Aponta-se a necessidade de uma limitação no tocante aos crimes do DL 28/84, “por forma a abranger apenas as cometidas por meios informáticos e através de associação criminosa, bem como as incriminações contra a economia, com um elemento transnacional”. Parecendo haver, assim, e no entender do referido autor, uma consideração daquilo que são elementos de possível conexão internacional nas incriminações contra a economia. No entanto, e aqui importante, o catálogo referido no número 1 do artigo 368.º-A do CP revela-se primordial porque é um pressuposto de operacionalização da própria “aplicabilidade” do artigo 368.º-A do CP. Como refere MIGUEL GARCIA3: “Não haverá branqueamento sem infração precedente passível de incluir no n.º1, por fazer parte do catálogo, por ser uma das abrangidas pela remissão ou por se tratar de uma infração punida com pena de prisão de duração mínima superior a seis meses ou de duração máxima superior a cinco anos”.
O número 2 do referido artigo define, por sua vez, as práticas proibidas e incriminadas, i.e., contendo os elementos objectivos do tipo: “Quem converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas por si ou por terceiro, directa ou indirectamente, com o fim de dissimular a sua origem ilícita, ou de evitar que o autor ou participante dessas infracções seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reacção criminal, é punido com pena de prisão de dois a doze anos.” Refere o número 3 que “na mesma pena incorre quem ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade das vantagens, ou os direitos a ela relativos”. No fundo os movimentos, entendidos como condutas, proibidos reportam-se a estes movimentos: converter, transferir, auxiliar ou facilitar. Movimentos esses a que o número 3 do citado artigo acaba por adicionar, ainda, ocultar ou dissimular.
Por sua vez, o número 4 do referido artigo consagra que a punição pelos crimes previstos nos números 2 e 3 tem lugar ainda que se ignore o local da prática do facto ou a identidade dos seus autores, ou ainda que os factos que integram a infração subjacente tenham sido praticados fora do território nacional, salvo se se tratar de factos lícitos perante a lei do local onde foram praticados e aos quais não seja aplicável a lei portuguesa nos termos do artigo 5.º.
Acresce que, nos termos do número 6, a pena prevista nos números 2 e 3 é agravada de um terço se o agente praticar as condutas de forma habitual, no que é uma assunção clara da punição do fenómeno em causa quando praticada numa égide de prática reiterada e eventualmente ligada a associação criminosa. Refira-se, ainda, que nos termos do número 9 do referido artigo a pena pode ser especialmente atenuada se o agente auxiliar concretamente na recolha das provas decisivas para a identificação ou a captura dos responsáveis pela prática dos factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens, no que parecer se uma abordagem aproximativa aos mundos conexos do(s) whistleblowers e da delação premiada.
2. Breve referência ao quadro legal de prevenção: da Directiva (UE) 2015/849 ao enquadramento legislativo nacional
Inicialmente, sempre será necessário fazer um pequeno périplo sobre os principais momentos legislativos de enquadramento actual do fenómeno do branqueamento de capitais. Pretende-se, obviamente, fazer um caminho inicial de enquadramento da legislação em causa que permitirá, a final, sentir o pulso as suas características, mas, mais importante, definir as suas fragilidades.
Se a evolução do quadro legal do branqueamento de capitais tem sido marcado por um certo vector hiperlegislativo consubstanciado no aparecimento de diversas leis, regulamentos e portarias que pretendem entender e dar resposta concreta ao fenómeno do branqueamento de capitais, urge referir que a construção do tipo legal base do crime de branqueamento de capitais, como vimos, se encontra prevista no artigo 368.º-A do Código Penal. Mas essa construção é, hoje, complementada com a previsão de um quadro legal de prevenção muito por imposição legislativa comunitária mas que entra (resta saber com que extensão) na compreensão da figura.
Partindo também dessa base fundamental sempre teremos que referir, de forma breve, atenta a exiguidade deste comentário em causa, algumas das mais recentes directivas europeias sobre o tema assim como, claro está, o correlato movimento de transposição para o direito nacional. Nesse sentido, diga-se que a Lei n.º 25/2008, de 5 de junho, tinha vindo já transpor a Directiva n.º 2005/60/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de outubro de 2005, assim como a Directiva n.º 2006/70/CE, da Comissão, de 1 de agosto de 2006, abrindo caminho para uma política eficaz que pretendeu alterar profundamente o sistema nacional de prevenção e combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo, com a previsão de um âmbito de actuação legal para as Unidades de Informação da Polícia Judiciária (“UIF”), assim como o reforço dos deveres de cooperação das entidades obrigadas e a consagração do conceito de pessoas politicamente expostas.
Mas a Directiva (UE) 2015/849 de 20 de Maio de 2015, publicada a 5 de junho de 2015 no Jornal Oficial da União Europeia (“4.ª Diretiva”), veio tentar operacionalizar essa mudança de paradigma, aproveitando o lastro das directivas anteriores. Assume-se assim que aquele esforço representa também o reconhecimento expresso que o tema do branqueamento de capitais, do financiamento do terrorismo e do crime organizado representam realidades poliédricas de relevância primordial na construção da União Europeia (UE). Significa, também, que tais realidades encetam perigos concretos, i.e. contendo aspetos susceptíveis de comprometerem a integridade e estabilidade das instituições de crédito financeiras, bem como do sistema financeiro entendido como um todo orgânico que depende da estabilidade, coerência e validade de todos os seus componentes.
Assim, o fito da referida Directiva é precisamente tentar que haja uma assunção clara de todos os padrões definidos internacionalmente no combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo, nomeadamente as Recomendações revistas em 2012 do Grupo de Acão Financeira (“GAFI”). Mas e aqui o factor diferenciador, existem alguns vetores em que as regras agora definidas acabam por extravasar os passos iniciais dados por aquelas recomendações no que parece ser um intuito de procura de uma maior segurança e efetividade nos procedimentos. Os exemplos de introdução conceptual de “relação de correspondência” ou de “direcção de topo”, ou de expansão conceptual de conceitos já existentes na anterior 3.ª Directiva, como o conceito de “Pessoas politicamente expostas” (“PEP”) e respetivo regime, ou de revisão do conceito de “beneficiário efetivo”, atestam o esforço na concretização de conceitos e na operacionalização do combate ao fenómeno. No fundo, as mudanças acabaram por se centrar em alguns vectores centrais: no alargamento das entidades obrigadas, na assunção de um processo de avaliação de risco, na concretização de medidas de diligência quanto à clientela, na importância da descoberta de informações sobre os beneficiários efectivos e nos poderes sancionatórios das autoridades.
Esta Directiva acabou por ser transposta pela Lei 83/2017 que pretendia fazer um esforço de enforcing no tratamento do fenómeno. De facto, grossus modus, prevê a nova proposta de lei uma esfera correlata de deveres para as entidades obrigadas, que passa pelos seguintes patamares subsequentes e comunicantes: o dever de comunicação de operações suspeitas (artigo 43.º), i.e., à UIF, a PGR e ao DCIAP, de todas as operações em que saibam, suspeitem ou tenham razões para acreditar que os fundos utilizados provêm de atividades criminosas; dever de abstenção, em que as entidades obrigadas se abstêm de executar qualquer operação, que saibam ou suspeitem poder estar relacionadas com fundos provenientes com a prática de actividades criminosas; dever de colaboração, sendo que as entidades devem prestar toda a informação necessária, disponibilizando documentos inclusive, perante pedido das entidades supracitadas; dever de não divulgação, não podendo revelar ao cliente ou a terceiros que foram, estão a ser ou irão ser transmitidas comunicações ou informações com elas relacionadas, nem que se encontra ou possa vir a encontrar-se em curso uma investigação ou inquérito criminal.
Recentemente, o Regulamento 276/2019, de 26 de Março de 2019 vem alargar a aplicabilidade da Lei 83/2017, sendo que, num patamar objectivo, visa estabelecer as condições de exercício e respetivos procedimentos, instrumentos, mecanismos e formalidades inerentes ao cumprimento dos deveres, gerais e específicos, estabelecidos na Lei e os demais aspetos necessários a assegurar o cumprimento dos deveres de prevenção e combate de branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo (BC/FT) no setor imobiliário. Os destinatários são, por isso, claros: entidades que exerçam a atividade imobiliária em território nacional (sede estatutária ou efetiva ou agências, sucursais, delegações, representações) e ficam sujeitas à fiscalização do IMPIC, IP (cfr. artigo 1.º do Regulamento).
No entanto, esse quadro legal acaba, hoje, e para centralizar o presente esforço, por se consubstanciar naquilo que é a rede legislativa que, resumidamente, aqui damos conta: i) a Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto, que estabelece medidas de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo; ii) a Lei n.º 89/2017, de 18 de agosto, que aprova o Regime Jurídico do Registo Central do Beneficiário Efetivo e que entrou em vigor a 16 de Novembro de 2017; iii) a Lei n.º 92/2017, de 22 de agosto, que obriga à utilização de meio de pagamento específico em transações que envolvam montantes iguais ou superiores a J3.000 (três mil euros); iv) a Lei n.º 96/2017, de 23 de agosto, que define os objetivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2017-2019; v) a Lei n.º 97/2017, de 23 de agosto, que regula a aplicação e a execução de medidas restritivas aprovadas pela Organização das Nações Unidas ou pela União Europeia e estabelece o regime sancionatório aplicável à violação destas medidas; vi) a Portaria n.º 200/2019, de 28 de junho, que estabelece os prazos para a declaração inicial do RCBE.
Neste devir, salientar a Directiva (UE) n.º 2018/843 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de Maio de 2018 (“5.ª Directiva”), onde se prevê um conjunto de novas regras que passam pelo alargamento do acesso à informação sobre os beneficiários efetivos, aumentando a transparência no que diz respeito à propriedade efetiva no caso de empresas e fundos fiduciários; abordando, também, os riscos associados aos cartões pré-pagos e às moedas virtuais, tendo como objectivo incrementar a cooperação entre as unidades de informação financeira e, ultime, instituir controlos melhorados sobre as transações que envolvem países terceiros de alto risco.
Com este quadro legal em mente, sempre será necessário delinear as características definidoras do Acórdão a comentar, caminhando em direcção à identificação das fragilidades agora emergentes do novo quadro legal de prevenção.
3. Análise perfunctória do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-06-2014, referente ao processo 14/07.0TRLSB.S1, relator Raul Borges
Com este quadro legal em mente, e por referência a um Acórdão que é emblemático na consideração da caracterização do tipo legal de branqueamento de capitais, sempre teremos que fazer uma breve crítica aos segmentos/vectores principais enunciados, tendo em conta, por um lado, a evolução do entendimento dos vectores levantados desde a redacção do aresto (que é de 2014), e, por outro lado, a consideração da evolução e entendimento do fenómeno de prevenção do branqueamento de capitais.
Branqueamento - Criminalidade organizada - Globalização
O branqueamento de dinheiro é um problema que resulta em larga medida da abertura das economias ao exterior e da tendência para a mundialização da economia, tratando-se de uma consequência negativa dessa abertura e, simultaneamente, de um fenómeno que pode corromper e pôr em causa essa mesma abertura, se não for objecto de uma resposta adequada um fenómeno que ganhou especial vigor com a internacionalização da economia
O crime organizado, universal e cientificamente organizado, enquadra-se no fenómeno da globalização, sendo organizado verticalmente, e com todas as vantagens de uma sociedade secreta. O grande patrão do crime pode ser um cidadão respeitável, de peito medalhado, amigo do rei. Manda meter cheques na conta bancária e sereias na cama de nababos e poderosos. Chantageia e corrompe o mais Catão.
Tratando-se de um fenómeno novo, o branqueamento é fora de dúvida um produto da internacionalização da economia, sendo o mundo globalizado, desregularizado, campo propício à expansão do fenómeno, ao exercício do nomadismo que o caracteriza, podendo escolher os tabuleiros onde pode assentar as diversas fases de tratamento, as etapas que conduzam à extirpação da sujidade, à dissimulação da ilícita origem, à almejada limpidez do dinheiro que se pretende “reinvestir” no mercado das regras.
O branqueamento é como que o lado negro do processo de globalização, da liberalização das trocas internacionais e dos movimentos de capitais, da abertura dos mercados financeiros, da maciça informatização e do comércio electrónico.
O branqueamento de capitais (dinheiro ou outros bens) consiste no procedimento através do qual o produto de operações criminosas ilícitas é investido em actividades aparentemente lícitas, mediante dissimulação da origem dessas operações; traduz-se no desenvolvimento de actividades, em resultado das quais um aumento de valores, que não é comunicado às autoridades legítimas, adquire uma aparência de origem legal, sendo, no fundo, um processo de transformação.
Segundo o Relatório de Outubro de 1984 da President´s Commission on Organized Crime, Estados Unidos da América do Norte, por branqueamento “designam-se os meios através dos quais se escondem a existência, a origem ilegal ou a utilização ilegal de rendimentos, encobrindo esses rendimentos de forma a que pareçam provir de origem lícita” ou, segundo outra tradução é “o processo através do qual se esconde a existência, a fonte ilegal ou a utilização ilegal de proveitos, e depois se disfarçam esses proveitos de forma a dar-lhes a aparência de legítimos”.
O branqueamento é algo diferente de um Kavaliersdelikt, pois a luta contra ele coenvolve sempre, também, o combate à acção prévia, da qual nasceu a vantagem que carece de ser branqueada.
Daí, o afirmar-se o carácter subsidiário ou acessório do branqueamento, pois a respectiva actuação pressupõe necessariamente, um facto ilícito prévio.
A privação dos lucros e das fortunas ilicitamente adquiridas por meio de actividades criminosas constitui uma das finalidades pragmáticas do branqueamento.
A criminalização do branqueamento de capitais faz parte de um claro ímpeto actual com vista a atacar o lado patrimonial da criminalidade. Este movimento inclui designadamente um renovado interesse no fenómeno da corrupção e a sugestão de que se deveria criminalizar o facto de se ter património cuja origem lícita se não consegue demonstrar («sinais exteriores de riqueza não justificados»).
O branqueamento de capitais e outros produtos do crime corresponde a um fenómeno recente, relacionado com o crime internacionalmente organizado, à criminalidade organizada, que se não confunde com o tipo legal de associação criminosa.
O branqueamento de capitais é uma categoria criminal nova, recente, moderna, situando-se numa zona de confluência com o da criminalidade organizada, no nosso caso, introduzida a partir de lei avulsa de Janeiro de 1993, em ligação estreita e então única com o crime de tráfico de estupefacientes, com recidiva, com previsão de maior amplitude, através de nova lei avulsa em Dezembro de 1995, e posteriormente, inserida nos catálogos das infracções codificadas,
O branqueamento de dinheiro ou de capitais é um fenómeno de amplitude mundial, que surgiu pela primeira vez, a nível mundial, associado ao tráfico de estupefacientes transnacional, que tem determinado que organizações internacionais e supranacionais tenham desenvolvido e continuem a desenvolver variadíssimos esforços, com o objectivo de, em última análise, generalizar e tornar mais eficaz o combate a tal tipo de criminalidade organizada.
O início da reacção das Nações Unidas contra a criminalidade do branqueamento pode localizar-se em 1975 com o 5.º Congresso das Nações Unidas para a prevenção do crime e o tratamento dos delinquentes, realizado em Genève, onde foi abordada a temática do crime como empresa lucrativa.
A primeira iniciativa da comunidade internacional, em termos de elaboração de instrumentos sobre a questão de lavagem de dinheiro, consistiu na Recomendação do Conselho da Europa, n.º R (80) 10, de 27 de Junho de 1980, relativa às disposições contra a transferência e a dissimulação de fundos com origem ilícita.
O branqueamento de capitais e de outros bens provenientes de actividades criminosas, nomeadamente os derivados de tráfico de estupefacientes, substâncias psicotrópicas e precursores, passou a ser objecto de combate específico a partir da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas de 1988 (Convenção de Viena), adoptada em Viena na 6.ª Sessão Plenária da Conferência das Nações Unidas, em 20 de Dezembro de 1988.
Esta mesma Convenção pode ser considerada como um dos instrumentos mais detalhados e de maior alcance no domínio do direito penal internacional, tendo-se operado a sua incorporação no direito interno com o Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
Manifestando as mesmas preocupações, o Conselho da Europa, na senda da Recomendação de 1980, promoveu a elaboração da Convenção Relativa ao Branqueamento, Detecção, Apreensão e Perda dos Produtos do Crime (Convenção de Estrasburgo/Convenção de 1990/Convenção n.º 141 do Conselho da Europa, Council of Europe Treaty Series, STE n.º 141), aberta à assinatura, em Estrasburgo, em 8 de Novembro de 1990, data em que foi assinada por Portugal
A partir de Janeiro de 1993, com o Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, opera-se uma verdadeira neocriminalização, com a tipificação da actividade de branqueamento de capitais obtidos com o tráfico de droga.
Comentário: a abordagem da importância do problema num espectro de “aldeia global” é fundamental. Mas parece-nos, contudo, que o espaço percorrido pelo acórdão permitiria, sempre, e ainda, alguma margem de desenvolvimento que não terá sido plenamente conseguido. Neste ensejo o contributo daquilo que foi o pesado legado da crise económica do subprime sempre será essencial, uma vez que, este preciso quadro legal acaba por constituir e ser um desenvolvimento normativo (num certo espectro) daquele modelo/momento de mudança de paradigma. A principal vítima de toda aquela ambiência, nomeadamente no nosso país, foi, relembramos, o conceito relacional da fides, base e capital de confiança indispensável em que assentava a relação, em concreto, entre as instituições financeiras e a sua clientela. Os inúmeros escândalos, mais ou menos mediatizados, assim como os inúmeros processos com contornos duvidosos que assolaram a nossa aldeia global, transformaram a forma como as pessoas encararam as instituições financeiras e seus produtos. Paralelamente a forma quase despudorada como alguns agentes financeiros multiplicavam e exponenciavam lucros, por caminhos sinuosos, fez com que a idade da inocência fosse superada, exigindo-se um esforço proactivo de reparação da confiança dos investidores. Mas estes laivos da crise e da perda de confiança também se repercutiram, até, no demarcado âmbito do direito penal, nomeadamente, a montante, com uma maior preocupação de abordagem a este fenómenos e aos denominados white colar crimes, assim como noutros âmbitos temáticos de Direito Penal Económico, e, a jusante, com o desenvolvimento legislativo (até por imposição de directivas europeias) de abordagem a essas realidades.
Precisamente, é também esta ambiência que ajuda a justificar uma certa tendência que se relaciona com a tomada colectiva de consciência para os fenómenos relacionados com esse mundo económico e, mais importante, a necessidade de os prevenir e, subsequentemente, a necessidade premente de a eles reagir. Situamo-nos, pois, e descendo daquilo que era uma abordagem genérica para uma consideração concreta, no âmbito da resposta à criminalidade económica. E é esta síndrome de Sísifo, aqui consubstanciado na inexistência de um locus delicti, na pluralidade de crime cometidos e, muitas vezes, na lentidão na resposta a este tipo de criminalidade, que também exige, quer no branqueamento de capitais, quer em todos os outros “crimes económicos”, a urgente definição de critérios de luta contra a criminalidade económica, para lá das considerações prolatadas no aresto.
E esse caminho assenta num duplo paradoxo. Vivemos numa aldeia global onde, com a destruição das fronteiras físicas (e psicológicas) e com o advento de todos aqueles novos espaços mercê do desenvolvimento informático e tecnológico, partimos, pelo menos teoricamente, e num plano de disponibilidade (quase e apenas de espaço físico) com maior facilidade para “os outros”. E é aí que radica, primariamente, a questão. Com essa diáspora humana (também tecnológica) surgem novas áreas onde, potencialmente, podem surgir novas tensões e relações de conflitualidade. No fundo, estaríamos a desenvolver-nos e a caminhar, no nosso iter de desenvolvimento e crescimento enquanto sociedade em direcção a novas relações de tensão, consequentemente de conflitualidade e, nesse sentido, de possível deterioração dos laços e conquistas existentes. O crescimento, num círculo enviesado potenciará assim, sempre, relações de conflitualidade que poderão desaguar em decréscimo ou destruição desse mesmo caminho? Mas este paradoxo revela-se ainda numa outra vertente. Perante a constatação daqueles novos focos de exigência de resposta à criminalidade é também importante considerar de que forma essa globalidade, partindo dessa disponibilidade (aparentemente fictícia) para os outros, não nos está, verdadeiramente, a fechar em nichos isolados e não comunicativos. Daí que estas considerações, como veremos, até numa óptica da problemática de aplicação da lei no espaço, cada vez mais essencial, seriam sempre um vector importante naquilo que e o esforço de entendimento actual (para lá do acórdão) do fenómeno do branqueamento de capitais.
Aplicação da lei no espaço
A punição pelo crime de branqueamento tem lugar ainda que os factos que integram a infracção subjacente tenham sido praticados fora do território nacional, ou ainda que se ignore o local da prática do facto.
Ultrapassada a definição do locus commissi delicti tradicional, é irrelevante o local do cometimento do crime precedente; a punição pelos crimes de branqueamento abrange expressamente os casos em que os factos que integram a infracção principal tenham sido praticados fora do território nacional ou se desconheça o local do seu cometimento.
Comentário: a aplicação da lei no espaço afirma-se, cada vez mais, como o patamar de maior discussão (e importância) na consideração dos institutos de direito penal e, nomeadamente neste: no estudo do fenómeno de prevenção, combate e mitigação do branqueamento de capitais. Portanto, para lá do que é o caminho clássico percorrido pelo Acórdão, sempre será necessário sublinhar uma actuação concertada de combate à criminalidade económica, nos seguintes pilares: o papel do Estado como primordial para tal combate; a necessária exigência de cooperação entre os estados; o contributo das questões ou pontos doutrinários, i.e. através da aplicação da lei penal no espaço.
De facto, se o princípio da territorialidade é o ponto de partida dentro daquilo que são os parâmetros da nossa “actual civilização jurídico-cultural” da aplicação da lei penal no espaço, o sentido e o caminho tem sido feito, quando esse princípio basilar não actua, através da aplicação complementar de todos os outros princípios que integram aquele axioma, a saber: defesa dos interesses nacionais, do pavilhão, da nacionalidade, do princípio da aplicação universal. Nas palavras de FARIA DE COSTA “o que permite que, mesmo quando não possa funcionar o princípio da territorialidade, a lei penal nacional se aplique, desde que se verifique um conjunto de circunstâncias consagrado explicitamente pelo legislador”4. Interessante, na densificação destes critérios, é a consideração (defesa) do aumento dinâmico dos casos em que funcione a cláusula complementar que se sustenta no princípio da aplicação universal, propugnada por FARIA DE COSTA5, que, ultrapassando a radical ideia que as infracções visadas pelo analisando princípio sempre teriam que pertencer obrigatoriamente ao Código Penal, defende que “Nada há, em verdadeiro rigor, que impeça que sejam também consideradas infracções que integram o princípio da aplicação universal todas aquelas que o legislador julgue, em bom rigor, merecerem essa dignidade e que, todavia, pertençam ao direito penal acessório, ao direito penal secundário”. E no âmago desta problemática parece-nos profícuo dar nota deste preciso espectro: exige-se um esforço complementar na estipulação de critérios de luta contra a criminalidade que só será possível, humildemente consideramos, partindo do passado (dos critérios de aplicação penal no espaço “tradicionais”), mas projectando para o futuro (em que o princípio da aplicação universal poderá ter também um papel importante). Esforço aquele que também é central na temática do branqueamento de capitais.
Bem jurídico protegido
Pela inserção sistemática, o bem jurídico protegido pela incriminação é a realização da justiça, na sua particular vertente da perseguição e do confisco pelos tribunais dos proventos da actividade criminosa. Para alguns Autores, trata-se de um crime pluriofensivo.
Comentário: o bem jurídico protegido é, de facto, a realização de justiça quanto à adopção das medidas necessárias à perseguição e à eliminação dos defeitos de determinadas actividades criminosas. No fundo, o crime de branqueamento é, por isso, um crime de perigo abstracto em que se consideram as condutas que possam por em perigo a realização da justiça. Obviamente que para além da óbvia inserção sistemática no Código Penal que atesta a protecção do bem jurídico referido, não podemos deixar de considerar que o fenómeno de branqueamento de capitais, enquanto estabelecendo pontes lógicas de contacto com outras realidades jurídicas, acaba por tocar, também, e poder ofender, sobretudo, outros bens jurídicos, naquilo que é uma vertente de possibilidade pluriofensiva. Mas é esta vertente pluriofensiva que é essencial, hoje, para a concatenação do fenómeno e que não foi explorada pelo acórdão. Mas, complementarmente, a concretização destas características essenciais revela, também, a necessidade de uma abordagem evolutiva do tipo penal: partindo dos tipos objectivos e subjectivos estipulados no artigo 368.º-A do Código Penal, mas com a densificação “complementar” da Lei 83/2017 e do conceito de branqueamento de capitais ali propugnado. Com uma voz de fundo que nos lembra que na articulação do regime previsto no Código Penal com o regime previsto no espectro do quadro sancionatório próprio da Lei 83/2017, dificilmente atingiremos um equilíbrio sustentável.
Conexão entre branqueamento e ilícito típico precedente (autoria)
A punição do branqueamento de vantagens, prescindindo do território nacional como lugar único da prática dos factos que integram a infracção subjacente, prescinde igualmente da punição do autor do facto precedente ou mesmo do conhecimento da sua identidade.
A punição do branqueamento não pressupõe que tenha de existir agente determinado ou condenação pelo crime subjacente.
A lei exige apenas o conhecimento da prática da infracção principal, e não a sua punição.
O crime de branqueamento e a respectiva reacção penal são autónomos em relação ao facto ilícito típico subjacente. Assim, não importa que este último não tenha sido efectivamente punido, por exemplo por inimputabilidade penal do agente, morte deste, prescrição, ou simplesmente, impossibilidade de determinar quem o praticou e em que circunstâncias.
O tipo do branqueamento exige apenas que as vantagens provenham de um facto ilícito-típico, não de um crime, donde a punição do branqueamento não depende de efectiva punição pelo facto precedente.
Comentário: o número 4 do artigo 368.º-A do CP consagra que A punição pelos crimes previstos nos n.os 2 e 3 tem lugar ainda que se ignore o local da prática do facto ou a identidade dos seus autores, ou ainda que os factos que integram a infração subjacente tenham sido praticados fora do território nacional, salvo se se tratar de factos lícitos perante a lei do local onde foram praticados e aos quais não seja aplicável a lei portuguesa nos termos do artigo 5.º. naquilo que é a assunção de uma cláusula de irrelevância do lugar da prática do agente e da identidade do agente. Mas este número parece referir uma aplicabilidade fora do território nacional menos lata, no ilícito criminal, do que a propugnada pelo regime de prevenção. Embora em relação aos crimes precedentes, a aplicabilidade do crime de branqueamento de capitais seja feita ainda que se ignore o local da prática do facto ou a identidade dos seus autores ou ainda que os factos do crime precedente tenham sido praticados fora do território nacional, a verdade é que aí existem restrições: salvo se se tratar de factos lícitos perante a lei do local onde foram praticados e aos quais não seja aplicável a lei portuguesa nos termos do artigo 5.º. No entanto, naquela aldeia global, e com fenómenos de branqueamento de capitais a surgirem em campos não tradicionais (vejam-se os modelos de branqueamento de bitcoins, branqueamento com utilização de blockchain, inter alia) surge aqui a dúvida fundamentada: estaremos perante a necessidade clara de apostar num alargamento da previsão e diminuição das restrições supra elencadas?
Pressuposto: o crime/facto precedente
O “Branqueamento”, sem mais, (nomem assumido com a codificação em 2004, presente na epígrafe do artigo 368.º-A, do Código Penal) pressupõe, actualmente, um facto ilícito típico (dantes, um crime em sentido técnico) anterior, que tenha produzido vantagens (com a definição do texto explicativo do n.º 1, com a inclusão dos producta sceleris e ainda dos bens que com eles - factos ilícitos típicos - se venham a obter).
A declaração de perda de bens a favor do Estado, ou o confisco, na via alargada ou não, e a punição do branqueamento, servem, por vias diversas, o mesmo desiderato: a pretensão estadual de atacar as vantagens do crime.
A juzante, o branqueamento das vantagens. A montante, o crime prévio, de onde aquelas provêm.
O branqueamento de dinheiro, para utilizar uma fórmula simplificada, supõe uma infracção principal (predicated offence), com outras, variadas designações, ao nível do direito europeu e internacional, como crime prévio, crime originário, delito pressuposto, crime-base, crime primário, crime antecedente, crime precedente, facto referencial, crime designado, infracção subjacente, facto ilícito típico (designação presente nos n.º 1, 5, 7, 9 e 10 do artigo 368.º-A do Código Penal, embora com simultânea referência, no n.º 1, a “infracções” referidas no n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 36/94, estando o termo “infracções” igualmente presente no n.º 2, e ainda a expressão “infracção subjacente” no n.º 4), todas a significar a actividade criminosa (ou ilícita típica) de origem dos bens, a infracção cuja receita está na origem do branqueamento, e a juzante, uma infracção criminal secundária, um pós delito, propriamente, o branqueamento.
O critério actual de definição do facto ilícito e típico de que decorre a vantagem é misto, conjugando um catálogo de crimes, uma cláusula geral reportada à gravidade da infracção principal, valorada pela pena aplicável (puníveis com pena de prisão de duração mínima superior a 6 meses ou de duração máxima superior a 5 anos) e ainda uma remissão (já presente desde 1995 – artigo 2.º, corpo, do DL n.º 325/95) para um elenco de infracções constante de lei avulsa (Lei n.º 36/94, de 29 de Setembro).
Actualmente o facto precedente não tem que constituir um crime em sentido técnico (um ilícito - típico culposo e punível), mas um simples ilícito - típico, prescindindo, pois, do carácter culposo e punível.
A actividade de branqueamento é uma criminalidade derivada, de 2.º grau ou induzida de outras actividades, pois só há necessidade de “branquear” dinheiro se ele provier de actividades primitivamente ilícitas.
O branqueamento de capitais constitui uma criminalidade derivada ou de segundo grau, no sentido de que tem como pressuposto a prévia concretização de um ilícito.
Esta relação do branqueamento com o facto precedente, a relação genética entre a lavagem e o crime gerador das receitas, lucros necessitados de branquear, não impede a afirmação da autonomia do branqueamento.
O branqueamento de capitais pode ser caracterizado como um tipo derivativo, secundário, acessório ou «de conexão», sendo, neste ponto, em tudo análogo ao favorecimento pessoal, à receptação e ao auxílio material ao criminoso, visto que todos estes tipos legais fazem em parte derivar o seu conteúdo de ilicitude, embora nem sempre da mesma forma, do facto principal, podendo denominar-se todos estes tipos que pressupõem um ilícito-típico anterior de «adesões posteriores» ou «pós factos».
O crime de branqueamento de capitais é estruturalmente autónomo da criminalidade subjacente.
Desde que se tenha verificado a prática do crime-base e sejam praticados actos subsumíveis ao tipo de branqueamento, este ganha autonomia, no sentido de que o respectivo agente será penalmente perseguido mesmo nos casos em que, por exemplo, o autor do crime-base seja penalmente inimputável, morra, ou o procedimento criminal por tal crime se encontre prescrito.
Pode haver “crime de branqueamento”, mesmo que os factos subjacentes não sejam criminalmente puníveis.
Acolhendo os ensinamentos de Figueiredo Dias, o conceito de facto ilícito típico é introduzido no Código Penal, aquando da terceira alteração, operada pelo DL n.º 48/95, de 15 de Março, surgindo associado ao pós delito, na definição dos crimes de receptação e auxílio material (artigos 231.º e 232.º), e em consideração a juzante, ao aproveitamento dos resultados do crime, na declaração de perda a favor do Estado dos producta sceleris (artigos 109.º, 110.º e 111.º), ou numa outra perspectiva relacionada com medidas de segurança (artigo 91.º em conexão com artigo 20.º).
Já antes a categoria estava presente no artigo 35.º, versando perda de objectos, do Decreto-Lei n.º 15/93.
Com a codificação do branqueamento em Abril de 2004, o facto precedente passou a designar-se facto ilícito típico, designação presente nos n.º 1, 5, 7, 9 e 10 do artigo 368.º-A do Código Penal.
Comentário: o crime precedente por referência a um catálogo que, à data da elaboração do acórdão, se entendia ser taxativo, funcionava como uma fattispecie de pressuposto de aplicabilidade: se se provasse que a vantagem tinha sido adquirida através de um crime, mas que aquele não era um crime de catálogo, não haveria preenchimento do crime de branqueamento. Obviamente que remeter essa condição de punibilidade por referência a um catálogo que pouco tem evoluído faz surgir uma preocupação de eventual possibilidade de criação de espaços de impunibilidade. E para lá das naturais dificuldades probatórias de inserção de uma situação num daqueles tipos de crime catálogo, a verdade é que essa preocupação é agravada com as consequentes sinergias de facilidade transfronteiriça (até digital) da prática do crime de branqueamento e, sobretudo, com o surgimento de novos tipos de crime de onde podem surgir (emergir) vantagens que quebram com os modelos tradicionais. Assim, parece haver uma necessidade de consideração daquilo que são elementos de possível conexão internacional nas incriminações, nomeadamente no âmbito económico, com a previsão de uma cláusula mais alargada do catálogo do crime precedente? Onde fica o equilíbrio?
Punição do auto branqueamento
O autor do facto precedente pode ser autor do crime de branqueamento, ou seja, o autor do crime base pode ser perseguido cumulativamente pelo de reciclagem dos produtos daquele.
Face à lei actual, é possível a punição por branqueamento, em concurso real, do próprio autor do crime subjacente.
Comentário: Uma breve nota para realçar que existe uma necessidade de combater o fenómeno para lá do autobranqueamento, i.e., dos casos em que o autor do crime precedente é também o agente concreto do posterior crime de branqueamento, podendo haver concurso real pela prática de ambos os comportamentos. Se este figurino é recorrente, a verdade é que a complexificação das relações, nomeadamente num âmbito económico-financeiro, e por referência a ambientes de associação criminosa, faz com que sejam adoptados modelos cada vez mais sofisticados. Pelo que, para lá do autobranqueamento, naquele espectro, sempre teremos que falar em fenómenos de heterobranqueamento, com múltiplos actores e agentes que exigem uma resposta também ela mais qualificada.
3. As fragilidades do quadro legal de prevenção e a necessidade de um manual de prevenção de branqueamento de capitais
Fast forward, da consideração do ilícito típico criminal e das opções de fundamentação do referido aresto, temos, agora e hoje, a consideração de um modelo de prevenção que, supra, na introdução, demos nota. No entanto, e como o mundo prático impõe, a implementação da Lei 83/2017 e restantes ramificações legais tem sido marcada pela identificação de uma série de fragilidades que colocam a sua operacionalização em risco: 1) existe, desde logo, uma disparidade entre as baixas molduras penais previstas para os ilícitos criminais versus coimas de montante elevado (e passíveis de agravamento), que compromete o equilíbrio na e da sua aplicabilidade; 2) consignou-se, também, uma previsão de competência instrutória e decisória disseminada que obsta, também, a eficiência no tratamento dos processos; 3) construi-se um dever de comunicação das operações suspeitas sem a adopção de um critério qualitativo claro, existindo, isso sim, um dever de denúncia alargada que compromete a qualidade do procedimento e da informação eventualmente veiculada; 4) consagrou-se, também, uma autêntica disseminação das remissões constitutivas de aplicabilidade de direito subsidiário que remete a aplicabilidade dos regimes do Código Penal e do RGCO para situações limite e completamente (e diríamos abertamente) residuais; 5) existe um fito pouco claro e quasi economicista no tratamento concreto do destino das coimas e do benefício económico, sendo que, e no caso concreto de outras autoridades sectoriais (para lá do Banco de Portugal e da CMVM) responsáveis pelo processo, aqueles valores revertem, precisamente, para a autoridade sectorial competente, que, a partir desse momento (com bondade, uma vez que, na verdade, o momento será anterior) fica com um interesse concreto na prossecução e outcome do caso; 6) o caso concreto da punibilidade tout court da tentativa e negligência, e o caso concreto da proibição da reformatio in pejus, que se afastam do regime geral e que estão no limite da violação grave dos direitos dos arguidos assim como da consubstanciação de patamares de inconstitucionalidade; 7) com a adopção de um elenco de 95 contraordenações, previstas no artigo 169.º da Lei, por violação de deveres previstos na Lei de BC/FT e no Regulamento (UE) 2015/847, que é, juridicamente, contranatura. Em conclusão, a prática jurídica no tratamento destas questões vem demonstrar já, e em correlato apuramento de feedback junto das entidades obrigadas, a existência de alguns obstáculos inegáveis, que se consubstancia numa dificuldade de compreensão do catálogo de contraordenações existente. E esta dificuldade repercute-se em três níveis diferenciados. A dificuldade de implementação e previsão, a montante, por parte das entidades obrigadas. A dificuldade, a jusante, das entidades competentes em subsumirem os eventuais comportamentos violadores ao catálogo existente. E, ainda, num terceiro nível cúpula, problemas de definição de competência instrutória e decisória dos processos. Em suma, uma complexificação desnecessária dos processos de operacionalização.
O modelo da Lei 83/2017 estabelece, por isso, pontos de contacto lógico (convergência e convergência evolutiva) com os regimes bases, mas tem uma nota de independência e autonomia que o afirmam como um regime com características próprias, mas que sublinham a necessidade duma revisão profunda do RGCO e uma harmonização entre os ditos regimes sectoriais, diminuindo as diferenças existentes que dificultam o seu estudo e a sua operacionalização. E, por outro lado, sublinham sobretudo a necessidade de recusa de uma transposição quase acrítica de instrumentos de Direito Internacional e da União Europeia, com sobreposições assinaláveis em relação a diplomas nacionais ou – o que é mais grave – com soluções legislativas opostas. Não bastava, sobretudo, que a ligação formal àquilo que é um fenómeno também complexo do terrorismo (e que só aparece na epígrafe da referida Lei) pudesse ser utilizado para justificar acriticamente qualquer movimento de supressão dos direitos de defesa dos Arguidos e, de forma mais lata, qualquer violação dos mais elementares princípios penais e processuais penais, o que, infelizmente, acontece.
Perante estas fragilidades, existem sobretudo dúvidas na operacionalização do modelo concreto de prevenção propugnado. Dúvidas essas que, para lá de um momento transitório de início de aplicabilidade da(s) própria(s) lei(s), correspondem a um reconhecimento expresso da sua complexidade e, claro, acabam por alertar, sobretudo, para uma futura ineficácia. Precisamente por isso, torna-se importante sublinhar a necessidade da elaboração, de forma objectiva, formativa e sistemática, de um manual onde constem os conceitos, normas e procedimentos de prevenção do branqueamento de capitais, dando inteligibilidade e alma a este figurino legal. No fundo, transitando de uma abordagem etérea e geral que parece ainda reinar, para uma abordagem prática de prevenção do fenómeno, preparando clientes, empresas e instituições, afinando a sensibilidade necessária, garantindo a qualidade da informação transmitida e a automaticidade, unicidade e eficácia dos procedimentos.
Notas:
1. Tudo na anotação ao artigo 368.º- A do CP em GARCIA, M.Miguez; RIO, J.M. Castela. Código Penal. Parte Geral e Especial Comentado. Coimbra: Edições Almedina, 1280-1281.
2. ALBUQUERQUE, Paulo Pinto. Comentário ao Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2007, p.1090
3. GARCIA, M. Miguez, ob. cit., loc. cit.
4. Cfr. FARIA COSTA, J., ob. cit., p.94.
5. Cfr. FARIA COSTA, J., ob. cit., p.97