Ana Rita Cavaco e a sindicalização das Ordens Profissionais ;

Ana Rita Cavaco e a sindicalização das Ordens Profissionais
Não será novidade que em Portugal muitos responsáveis públicos parecem desconhecer na totalidade as competências, funções e limites dos cargos que ocupam. Mas, provavelmente porque a natureza do cargo e o seu exercício implicam uma difícil conjugação de interesses, haverá poucos domínios em que isso é tão visível como nas Ordens Profissionais. Estas são aquilo que se chama formas de auto-tutela: existem para regular aspectos sobretudo técnicos de uma dada profissão, que se entende, dada precisamente essa mesma natureza técnica, devem ser regulado pelos profissionais da área. Para o efeito, as Ordens Profissionais são entidades públicas, com poderes significativos de regulação de uma profissão.

No entanto, e isto cada vez menos parece ser claro para todos - incluindo os responsáveis máximos das Ordens, os Bastonários - , as Ordens Profissionais não são exactamente representações dos interesses dos seus profissionais. São, isso sim, representantes do interesse público no exercício de uma dada profissão. Podendo parecê-lo, isto não é um preciosismo ou uma questão de semântica. Trocando por miúdos, o que isto significa, recorrendo a um exemplo, é que a Ordem dos Advogados não representa os Advogados, representa o interesse da comunidade em que a profissão de advogado seja exercida por profissionais capazes e cumpridores de das regras, técnicas e éticas, da profissão.
Não é preciso um grande esforço para perceber que estes limites são muitas ultrapassados, consciente ou inconsciente. Basta, para o efeito, recordarmo-nos de  como a Ordem dos Advogados passou por períodos em que mais parecia interessada em vedar o acesso à profissão, em defesa dos interesses estabelecidos. Situações como esta são também visíveis noutras Ordens: sucessivos Bastonários da Ordem dos Médicos têm surgido como uma espécie de Provedor oficioso dos médicos e do Serviço Nacional de Saúde.
Este borratar de fronteiras, em que várias Ordens parecem mais interessadas em defender os interesses dos seus membros do que em  regulá-los - aquilo a que, em direito, se dá o dramático nome de "captura da regulação" -, tem ocorrido dentro de limites que diríamos aceitáveis. Retornando ao exemplo do Bastonário da Ordem dos médicos este poderá sempre alegar que se pronuncia sobre as condições de trabalho no SNS porque as más condições de trabalho impossibilitam o exercício correcto da actividade médica, o que é da sua competência regular. Sendo forçado, será minimamente aceitável. Um esticar da corda, sem que a faça rebentar.
Porém, um outro patamar foi atingido pela Bastonária da Ordem dos Enfermeiros. Ouvindo a generalidade das suas declarações, podemos constatar um total despudor: não lhe passa sequer pela cabeça que não lhe cabe a representação dos interesses dos enfermeiros, defendendo-os indisfarçadamente. Para isso existem sindicatos. A estes sim, cabe representar os interesses dos enfermeiros, se o entenderem necessário com recurso à greve. O que não é admissível é que uma Bastonária, publicamente e no exercício das suas funções, apoie uma greve, ao arrepio das atribuições e competências legais e da lógica do sistema.
Repare-se que não está em causa a justiça ou injustiça das reclamações dos enfermeiros. Poderão ser perfeitamente legítimas, o que não custa a acreditar, num SNS cativado. O que não pode acontecer é a perversão de uma Ordem Profissional, uma entidade pública, para a prossecução de fins que não são os seus. Se Ana Rita Cavaco pretende zelar, única e exclusivamente, pelos interesses dos enfermeiros, pode fazê-lo. Mas, obviamente, demita-se...
 

 
Pedro Coutinho Jurista/académico, 20/02/2019
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