O trabalho e as plataformas digitais;

O trabalho e as plataformas digitais


João Zenha Martins

Professor Associado da Nova School of Law
Um dos grandes desenvolvimentos no mundo do trabalho na última década foi o aparecimento das plataformas digitais de trabalho. Estas surgiram de par com a digitalização e as TIC, o desenvolvimento da Inteligência Artificial, da analítica avançada, da automação, dos dispositivos inteligentes, das impressoras 3-D, da Internet das Coisas, dos Big Data, dos sistemas ciberfísicos, das tecnologias avançadas de sensores, da computação quântica e das redes de comunicações.
As plataformas digitais de trabalho incluem plataformas baseadas na web, onde o trabalho é externalizado para um elevado número de trabalhadores geograficamente dispersos (também designado como crowdwork), verificando-se, assim, tanto uma modelação das relações laborais fora dos esquemas formais correntes quanto uma mobilidade espácio-temporal que ultrapassa o modelo socialmente dominante.
As múltiplas formas de trabalho associadas à gig or sharing economy (também chamada peer to peer industry) incluem «formas atípicas de emprego» que, aparecendo associadas à tecnologia, pode deixar muitas pessoas fora do mercado de trabalho e operar uma limitação do acesso aos sistemas de segurança social, designadamente  através da estruturação de esquemas de oferta de bens ou serviços que estão no halo da chamada “economia colaborativa” (New Gig Economy Works), e que se processam através de plataformas de intermediação, que colocam serviços e consumidores em comunicação, e de plataformas de mercados digitais, que oferecem diretamente serviços ou bens online.
Esta nova realidade, segundo a Agenda Europeia para a Economia Colaborativa apresentado pela Comissão Europeia (02.06.2016), é baseada em «modelos empresariais no âmbito dos quais as atividades são facilitadas por plataformas colaborativas que criam um mercado aberto para a utilização temporária de bens ou serviços, muitas vezes prestados por particulares».
Se o trabalho é realizado através de plataformas digitais, pode incluir (formas de) trabalho ocasional, permanente, temporário, economicamente dependente ou quase independente, informal, à peça, de grande ou pequena escala, a partir de casa e crowdwork e tanto abrange o trabalho realizado digitalmente quanto manualmente (cruzam-se ainda características relacionadas com o elevado ou baixo nível de competências), é conhecida, no Reino Unido, a confirmação judicial do Court of Appeal de Londres, em 19.12.2018, no caso Uber v Aslam & Others, de que, sem prejuízo da distinção legal (aí) existente entre workers e employees(1), dois motoristas da Uber tinham uma relação laboral com a empresa que opera por meio de uma plataforma digital, sendo, em sequência, qualificáveis como workers.
A uberização do trabalho(2) levou também a que a Cour de Cassation, em 04.03.2020, sufragasse entendimento idêntico, já depois da reforma do mercado de trabalho de 2016 (Lei n.º 2016-1088, de 08.08[3]), que havia reconhecido um conjunto de direitos a quem desenvolve a sua atividade por meio de plataformas dedicadas à conexão eletrónica de prestadores de serviços e os seus destinatários, e que, como é consabido, irrompeu na sequência da declaração de ilegalidade da atividade da Uberpop em território francês.
Ora, se com a Lei n.° 2016-1088, de  08.08.2016, o legislador tinha desenhado um sistema de responsabilidade social das plataformas digitais com a inserção dos artigos L7341-1 a L7341-6 no Code du Travail – configurando uma categoria a se de trabalhadores, quais sejam aqueles que prestam serviços em França para empresas que, independentemente da sua localização física, conectam pessoas por meios eletrónicos para vender mercadorias, prestam serviços ou trocam mercadorias ou serviços –, a novidade primeira da lei esteve no facto de, fosse qual fosse o enquadramento contratual aplicável aos profissionais, a entidade detentora da plataforma estar obrigada a assumir uma dupla ´responsabilidade social `sempre que estabeleça as características do bem ou serviço e o preço: (i) cobertura equivalente à estabelecida para os acidentes de trabalho pelo sistema de segurança social e (ii) garantia do direito à formação profissional contínua para esses profissionais(4).
Entre nós, havendo, de jure condito, três enquadramentos possíveis: (i) trabalho independente, (ii) trabalho subordinado (iii) e trabalho autónomo, mas com dependência económica, a criatividade jurídica que tem cunhado vários clausulados [designadamente (i) previsão de substituição de trabalhador a todo tempo ou cessação ad nutum, com caráter imediato, da relação contratual] não obstará ao reconhecimento de que se pode estar, de facto et de jure, perante trabalhadores subordinados, sendo necessário atender, inter alia, (i) à fixação de tempos de trabalho e de dias de descanso, (ii) à existência de previsões acerca das situações que determinam a suspensão da prestação de trabalho, (iii) aos sistemas de geolocalização, (iv) à eventual previsão de sanções em caso de incumprimento, (v) à configuração da app como sendo o instrumento de trabalho efetivo e/ou o “escasso valor” para o desenvolvimento da atividade dos meios que o trabalhador utiliza quando comparado com o valor subjacente à plataforma e à dimensão da marca no mercado, (vi) ao sistema de fixação dos preços e ainda (vii) à forma como que se processa o respetivo pagamento.
Sem que esqueça a importância de aspetos como a partilha de riscos e a integração na estrutura organizacional de outrem, bem como a necessidade de averiguação se a independência formal do prestador é meramente hipotética, fictícia ou nominal, é, todavia, ainda grande a infixidez subjacente ao enquadramento atribuível a quem se encontra envolvido por estas novas formas de prestação de trabalho(5).
 Sendo frequente descrever-se o trabalho por meio de plataformas digitais como um trabalho secundário, que representa uma fonte de rendimento complementar e não a principal fonte de rendimento daqueles que o realizam, há tendência para se sobredimensionar a “disponibilidade quase contínua” destes trabalhadores, num contexto em que eles estão necessariamente mais expostos ao risco de informalidade e em que têm poucos ou nenhuns benefícios contratuais (férias e subsídio por doença, informação, formação, serviços e apoio no que respeita à segurança e saúde no trabalho).
Se a situação já levou o Parlamento Europeu, em Resolução de 15.06.2017 sobre as plataformas em linha e o Mercado Único Digital(6), a considerar que «muitas plataformas de intermediação em linha são estruturalmente semelhantes a agências de trabalho temporário (relação contratual triangular entre: trabalhador temporário de uma agência/trabalhador de plataformas; agência de trabalho temporário/plataforma em linha; utilizador/cliente)» (ponto 44), é importante que, de jure condendo, se possa garantir o direito de os trabalhadores dos serviços colaborativos se organizarem e, a par de condições de trabalho equitativas e de uma proteção jurídica e social adequada, que se atribua também o direito à negociação e à ação coletivas, seja qual for o estatuto que estes recebam.
Trabalho é sempre trabalho no contexto das necessidades individuais e coletivas e, independentemente da conexão mais ou menos mediata com outras fontes, cadeias ou elos de produção, a incorporação irreversível das tecnologias traz consigo a responsabilidade de não abdicar dos valores sociais, sendo necessário cruzar, nesse trilema, os valores, os objetivos e os compromissos(7).

FONTE:
1 À luz do Employment Rights Act 1996 [secção 230(3)], os employees têm um estatuto correspondente ao (nosso) conceito de “trabalhador subordinado”, ao passo que os workers, estando compreendidos no conceito lato de employees, são uma categoria intermédia, cujo direito a um salário mínimo, ao princípio da igualdade, ao respeito pelos tempos de trabalho ou a um conjunto de regras de segurança e saúde no trabalho fazem parte de um núcleo estatutário intangível: Clyde Co Llp v Van Winkelhof (2014), UKSC 32 [2014), 1 WLR 2047. Sobre os conceitos, embora construíndo regulativamente o Direito do Trabalho a partir do conceito de empregador e dos direitos e deveres subjacentes, ver JEREMIAS PRASSL, The Concept of the Employer, Oxford: Oxford University Press, 2016, 3, 25 e 161.
2 O termo “uberização” do trabalho toma a multinacional digital Uber como referência para identificar todas as plataformas digitais em que a gestão de pessoas responde a outros modelos de trabalhos digitais: trabalhos parciais e trabalhos temporários executados por pessoal “freelancer” em regime de subcontratação (freelancers, empreendedores ou startup).
3 Lei n.° 2016-1088, de 08.08.2016, relative au travail, à la modernisation du dialogue social et à la sécurisation des parcours professionnels. Ver https://www.legifrance.gouv.fr/eli/ loi/2016/8/8/2016-1088/jo/texte.
4 Tratando-se, de forma não assumida, de uma incorporação da figura anglosaxã dos workers, os regulamentos devem estabelecer o rendimento mínimo que cada trabalhador independente deve ter para ser titular desses direitos (https://www.caf.fr/ visite-guide-e/la-prime-d-activite). No entanto, além desses direitos, os profissionais têm também o direito de se desconectar ou interromper a prestação de serviços sem dar origem a responsabilidade por quebra de contrato e o direito de formar ou ingressar em um sindicato e defender os seus interesses coletivos – (artigos 57 e 60 da Lei n.º 2016-1088).
5 No nosso ordenamento, cabe salientar o afastamento que a Lei n.º 45/2018, de 10.08, ao distinguir o operador de TVDE do operador de plataformas eletrónicas, veio trazer quanto à (eventual) constituição de uma relação laboral entre o motorista e a plataforma eletrónica, pois prevê que o contrato com o profissional é celebrado pelo operador de TVDE.  Em todo o caso, o diploma apenas contém o regime jurídico da atividade de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados, não sendo extensível a outras plataformas que não executem este tipo de atividade.
6 Ver https://www.europarl.europa. eu/doceo/document/TA-8-2017-0272_ PT.html?redirect.
7 Ler KLAUS SCHWAB, Moldando a Quarta Revolução Industrial (trad. Rui Candeias), Levoir, Lisboa, 2019, 54-5.
06/10/2021
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