Construção e reabilitação urbana: quem os viu e quem os vê!;

Construção e reabilitação urbana: quem os viu e quem os vê!



José Diogo Marques
Advogado, associado da área Imobiliário e Urbanismo da Cuatrecasas




Francisco Maia Cerqueira

Advogado estagiário da área Imobiliário e Urbanismo da Cuatrecasas
Nos últimos dez anos, o nosso mercado imobiliário conheceu transformações tais que deixariam perplexo qualquer promotor dos anos 90 e 2000 que viajasse ao futuro: foi a recuperação das crises do subprime e das dívidas soberanas, foi a internacionalização, foi a aceleração da gentrificação, foi o florescimento de produtos inovadores, num sector pouco permeável a novidades, foi o boom do turismo. E, agora, é a recuperação de uma pandemia e os efeitos globais de uma guerra local. Não faltam novas realidades – ou novas formas de realidades antigas? – que mereçam o nosso estudo e reflexão.
Na impossibilidade de nos focarmos em todas essas novas realidades, destacamos três grandes tendências que, do nosso ponto de vista, marcam o presente e o futuro próximo do sector da construção e da reabilitação urbana: o impacto da inflação, a implementação dos princípios ESG e os novos usos dos prédios.

Revisão de preços nos contratos de empreitada
O aumento exponencial dos custos da construção, numa primeira fase, como consequência das disrupções das cadeias de abastecimento das matérias-primas, durante a pandemia, e, mais recentemente, agravado por um fenómeno generalizado de inflação, colocou dramaticamente a questão das revisões de preços dos contratos de empreitada na ordem do dia.
O problema não é inaudito: a possibilidade de revisão dos preço das empreitadas tem sido, desde há mais de um século, objeto de tratamento por parte do legislador português, principalmente em obras públicas, com o objetivo de gerar confiança no tráfego jurídico, permitindo a revisão do preço devido por um contrato que se encontra a ser executado num contexto socioeconómico diferente daquele que esteve na base da sua celebração, de forma a assegurar que, afinal de contas, as obras sejam concluídas.



"Nos últimos dez anos, o nosso mercado imobiliário conheceu transformações tais que deixariam perplexo qualquer promotor dos anos 90 e 2000 que viajasse ao futuro"



Foi ao permitir-se o recurso a mecanismos de revisão de preços que passou a ser possível corrigir variações nos custos e encargos de uma empreitada que, por um lado, não estavam previstos ao tempo da celebração do contrato e que, por outro lado, iriam gerar um desequilíbrio contratual que, com toda a probabilidade, levaria a que, eventualmente, uma das partes, o empreiteiro, não fosse capaz de cumprir com o acordado.
Em 2004, foi alargado o recurso a estes mecanismos aos contratos de empreitadas de obras de particulares, ainda que facultativamente, passando assim a existir um quadro único que regula a revisão de preços. Devido principalmente à evolução tecnológica que se verificou no setor da construção desde então e ao desenquadramento face ao restante enquadramento legal vigente, o legislador decidiu, em 2021, atualizar este regime, de forma a ajustá-lo à nova realidade do mercado da construção.
Em razão da verificação de condicionalismos análogos aos que impactaram o nosso país no passado, maioritariamente devido às perturbações nas cadeias de abastecimento mundiais em consequência da pandemia da doença COVID-19 e à crise global energética resultante da guerra na Ucrânia, o legislador decidiu, em 2022, revisitar, uma vez mais, a legislação que versa sobre esta matéria, prevendo um regime de revisão de preços aplicável aos contratos públicos.
Deste modo, no que respeita aos contratos públicos, o quadro legal aplicável é mais ou menos certo e sabido.
No caso das obras particulares, em contratos de empreitada “antigos” (isto é, celebrados antes do fenómeno galopante da inflação), restará o recurso, mais ou menos negociado, à chamada “cláusula implícita” de alteração dos contratos por força de alterações anormais das circunstâncias; em contratos “novos”, antevê-se um regresso em força das cláusulas de revisão de preço e, eventualmente, a proliferação de contratos em regime de open book.

Princípios ESG
Não é nova a questão da responsabilidade social das empresas. Mas tem vindo a ganhar premência, fruto de uma tendência autorregulatória, fomentada e induzida pelas organizações internacionais, que culmina nos chamados princípios ou critérios environmental, social and governance. Não cabe aqui ponderar o fundamento metafísico ou teológico, nem a racionalidade destes princípios: o que importa é que eles estão aí e determinam o poder de decisão, designadamente na forma como os intervenientes do mercado se organizam e avaliam o impacto das suas ações na sociedade, como, por exemplo, na hora de escolher parceiros para desenvolver projetos na área do imobiliário.
Assim, as certificações ESG surgem assim como um “selo de qualidade” que não só influencia as decisões de gestão que são tomadas em relação aos ativos imobiliários, mas também a valoriza os próprios ativos. Cada vez mais, a intenção lucrativa dos investimentos é secundada pela preocupação com o respetivo impacto no ambiente e na sociedade.
Outra manifestação da importância destes princípios para os diferentes intervenientes no mercado imobiliário são as chamadas green clauses, também conhecidas por “cláusulas verdes” ou “cláusulas de sustentabilidade”, cláusulas mediante as quais as partes assumem obrigações relativas à ocupação sustentável de um imóvel, na medida em que estas se tornam cada vez mais numa forma de assegurar que as partes se vinculam e respeitam este conjunto de princípios.
Para além disso, se tivermos em conta os objetivos de emissões de carbono da União Europeia para 2050, rapidamente nos apercebemos de que é uma questão de tempo até que este conjunto de medidas se torne numa imposição transversal dos Estados-Membros e, em especial, nos agentes que operam no mercado imobiliário.
Deste modo, se tivermos em conta a legislação já em vigor e a que está neste momento a ser preparada, quer ao nível nacional quer ao nível europeu, e se relacionarmos esta crescente preocupação com o crescimento sustentável, atendendo naturalmente às já aqui referidas dificuldades que estão hoje a ser sentidas no sector imobiliário, rapidamente se torna evidente que é uma questão de tempo até que os princípios ESG tenham força de lei entre nós.

Novos usos e mudanças de usos
Os avanços tecnológicos da última década trouxeram consigo mudanças significativas também na forma como o sector imobiliário opera, nomeadamente no que toca aos usos que são dados aos imóveis, o que, não raras vezes, coloca desafios jurídicos acrescidos aos diversos intervenientes.
Na origem dos regimes de controlo prévio de operações urbanísticas, tinha-se presente um conjunto mais ou menos estanque de atividades admitidas nos imóveis – habitação, serviços, comércio, indústria ou turismo.
Com o surgimento de novos produtos imobiliários (e.g., short rental, build to rent, co-working, co-living, student housing, etc.), bem como de alterações nos padrões de consumo e de necessidades do mercado – o que se reflete no tipo de obras de reabilitação urbana – assistimos a uma “hibridização” e reconversão de imóveis que colocam novos problemas na apreciação de pedidos de licenciamento.



"Assim, as certificações ESG surgem assim como um “selo de qualidade” que não só influencia as decisões de gestão que são tomadas em relação aos ativos imobiliários, mas também a valoriza os próprios ativos"


Apesar de a lei urbanística admitir há muito usos mistos e as leis de ordenamento do território promoverem a compatibilidade de usos, nem sempre, na prática, a solução de gestão urbanística, isto é, de autorização de utilização dos imóveis e suas frações, é alcançada sem interrogações e perplexidades: student housing, é habitação ou equipamento ou uso turístico? E co-living, serviços ou habitação?
Por outro lado, a questão também tem uma perspetiva tributária que não é despicienda. O tipo de utilização que é dada a um prédio em Portugal tem um impacto no seu valor para fins tributários, uma vez que a fórmula que permite calcular o valor patrimonial tributário de um imóvel tem um coeficiente que é exclusivamente determinado pelo uso que é dado a um prédio.
Ora, se estamos a falar de novas realidades que muitas vezes se traduzem numa conjugação de mais do que um uso no mesmo prédio, tal só pode significar que esses dois ou mais usos também deveriam ser contemplados no momento de calcular o valor patrimonial tributário do imóvel, em vez de se recalcular, artificialmente, o valor patrimonial tributário de um imóvel, sempre que este seja “reafectado” para um outro fim.
Em tempos de fluidez, seria oportuno repensar as categorias dos usos dos imóveis, no nosso ordenamento jurídico.

Conclusões
Impondo-se estas três tendências como realidades no sector da construção e da reabilitação urbana, a criatividade lúcida, a flexibilidade e a rapidez serão os fatores diferenciadores, com valor acrescentado, que moldarão a prática e o “mercado” da assessoria jurídica aos operadores.
14/11/2022
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