Portugal não tem um historial de contratação pública de elevada qualidade
As propostas de “aligeiramento” dos procedimentos de contratação pública representam uma preocupação, até porque o nosso país, nesta matéria, não tem um percurso de valor acrescentado. Ainda que existam boas ideias e soluções, a realidade é que a burocracia continua a ter um peso excessivo, complicando sobremaneira os processos. Cabe ao Estado garantir mecanismos que possibilitem às empresas o cumprimento dos respetivos deveres, alerta Joaquim Miranda Sarmento, professor de Finanças no ISEG.
VJ – O pacote de medidas especiais de contratação pública contém as soluções necessárias e adequadas para o denominado Plano de Recuperação e Resiliência? O que mais poderia ser feito?
JMS – A resposta Europeia à crise da Covid-19 é fundamental. E essa resposta tem de ser rápida e eficiente. Mas receio que a urgência possa levar a erros nesta matéria. Portugal não tem um “track-record” de contratação pública de elevada qualidade. As instituições públicas nem sempre dispõem dos meios e dos mecanismos para gerar “value for Money” na contratação pública. Assim, as propostas de um certo “aligeiramento” dos procedimentos na contratação pública, sobretudo nas empreitadas de obras públicas e no Código dos Contratos Públicos, preocupam-me bastante.
VJ – De entre as medidas previstas, encontra-se a previsão de as entidades adjudicantes deverem assegurar que os operadores económicos respeitem as normas aplicáveis em vigor, seja em matéria social, laboral, ambiental, de igualdade de género e de prevenção e combate à corrupção. As entidades adjudicantes estão preparadas para efetuar tal controlo?
JMS – Creio que a esmagadora maioria das empresas está preparada. E as que não estão não têm razão nenhuma para não cumprir os requisitos sociais, laborais, ambientais e de promoção de igualdade e redução da corrupção. Isso é crítico para que operem em qualquer ambiente empresarial moderno e competitivo, em qualquer país desenvolvido. Temos de colocar a fasquia elevada para tornar as nossas empresas cada vez mais competitivas. Agora, o que não se pode passar é que esses requisitos se tornem em si mesmo um fardo de burocracia e de custos de contexto. O Estado só pode exigir quando ele próprio também cumpre, e quando proporciona mecanismos às empresas para que o cumprimento seja simples, barato e rápido. E, naturalmente, ajustado à dimensão de cada empresa. Infelizmente, em Portugal, muitas vezes, bons princípios e ideias perdem-se na teia burocrática “kafkiana” do Estado Português.
VJ – A associação da contratação pública a políticas sociais e ambientais parece vir a ser incrementada nas sucessivas alterações ao CCP. O que poderá advir dessa tendência?
JMS – O papel do Estado na adaptação às alterações climáticas passa também por imprimir na administração pública uma maior consciência ambiental, especialmente no que diz respeito à suaforma de fazer compras e adquirir serviços. O critério de sustentabilidade tem de ser prioridade nas compras efetuadas pelo Estado. Por um lado, coloca a máquina pública como participante na escolha por um país melhor e por outro lado, induz a pressão suficiente nos negócios e, nas empresas para que se adaptem a esta nova realidade. É o Estado a dar o exemplo do consumo eficiente e sustentável. Acresce que a sustentabilidade também deve uma prioridade ao nível dos modelos de negócio, que podem ser beneficiados desde que a sua lógica seja mais sustentável. Neste particular, destaca-se a transição para modelos de prestação de serviços, em vez dacompra de produtos, combatendo assim a obsolescência programada.
VJ – O pacote de medidas previsto poderá ser uma oportunidade para novos players no mercado ou, ao invés, poderá conduzir até a uma redução dos players na contratação pública?
JMS – Creio que pode ser uma oportunidade para novos players, que podem ver no setor público mais um cliente. Mas, se formos pelo caminho da burocratização excessiva, receio que possa haver o efeito contrário: ficarem apenas as empresas de maior dimensão bem como aquelas que depois conseguem “passar” o crivo da burocracia, muitas vezes, de forma pouco transparente.
VJ – A celeridade, a transparência e a concorrência têm vindo a ser reforçadas? Na sua opinião, o que poderá ser feito para a melhoria de tais pilares fundamentais da contratação pública?
JMS – Se olharmos para os resultados do CCP, desde 2008, creio que há hoje mais transparência e concorrência na contratação pública. A existência do portal de compras públicas é um fator muito relevante. Há também evidência empírica que o CCP reduziu a utilização de ajustes diretos (embora não tanto como desejável). E, por exemplo, há estudos que mostram que a introdução do CCP contribuiu para a redução dos desvios financeiros nas obras públicas. Creio que muito disto resulta naturalmente de o CCP consistir, em grande medida, da transposição de normas comunitárias.
Mas há ainda um longo caminho a percorrer. É preciso dotar a Administração Pública de melhores meios de avaliação da contratação, mas também de melhores meios de controlo e fiscalização. A digitalização tem aqui um papel crítico. É preciso dotar a Administração Pública de novas tecnologias, como a Inteligência Artificial, o “big data”, os algoritmos de aprendizagem, entre outras, que permitem menos burocracia e um tratamento da informação mais complexo e com menor margem de erro.
VJ – Na sua opinião, porque persistem ainda insuficiências na publicidade dos contratos públicos?
JMS – Perante o veto presidencial do diploma que previa a alteração às regras de contratação em matéria de projetos financiados ou cofinanciados por fundos europeus, é expectável que a versão final destas medidas seja mais restrita nas alterações previstas?
As críticas que foram feitas ao diploma em causa, quer por especialistas, quer depois em sede de apreciação pelo Senhor Presidente da República, não podem deixar de ser tomadas em consideração. Seria grave e prejudicial para o país se não se revissem várias das normas que se pretendiam incluir, sobretudo as que reduzem o escrutínio e a transparência dos processos e o papel do Tribunal de Contas.